Review: Little Simz – Sometimes I Might Be Introvert

A artista mostra que sua criatividade conceitual, fruto de uma mente brilhante para o seu tempo, ainda não se esgotou, pelo contrário, está muito longe disso

 

Dona de uma das discografias mais coerentes do rap inglês atual, Simbiatu ‘Simbi’ Abisola Abiola Ajikawo, a Little Simz, 27 anos, acaba de lançar seu 4° álbum  Sometimes I Might Be Introvert, com produção assinada pelo experiente Inflo, parceiro de longa data da artista e um dos articuladores do coletivo Sault.  Já se vão mais de 10 anos de carreira e lançamentos desde sua primeira mixtape, STRATOSPHERE, mais recentemente, seu último álbum,  GREY Área (2019), foi indicado ao Mercury Prize, prêmio que nomeia o melhor álbum do Reino Unido, todo esse status lançou, evidentemente, muita expectativa para o seu novo projeto. 

A sigla do álbum, SIMBI, brinca com o apelido de infância da cantora, anunciando que trará um conteúdo pessoal para o projeto. Nesse novo trabalho, Little Simz continua usando do storytelling e também de variações no seu flow para compor as músicas junto ao instrumental, que agrega uma gama de instrumentos sintéticos e orgânicos. Para ter uma noção da grandiosidade da banda de artista, indicamos suas performances no Tiny Desk Concert e COLORS, responsáveis por apresentá-la ao mundo.

O carro chefe do projeto, ‘Introvert’, defende seu posto com imponência, a melhor música do álbum é um prenúncio das pedradas que vêm pela frente, o destaque do disco em posição inicial é como uma válvula, uma porta aberta para a narrativa de Simz, num álbum que mistura referências tão antagônicas como o filme da década de 60, Breakfast With Tiffany’s e a literatura combativa e libertadora de Bell Hooks, oscilando entre o underground e o sofisticado, instrumentos sintéticos e orgânicos, de uma forma tão bem construída que fecha em um conceito coerente. 

O piano e as baterias de ‘Introvert’ gravados por banda simulam um boombap enquanto a letra relata situações de atrito internos e externos à mente, sobre garimpar uma felicidade e ao mesmo tempo ter que lidar com as feridas abertas, o refrão entra como uma prece com instrumentos de metais, anunciando-o e dando uma sensação de marcha e de guerra. Justamente, o álbum é sobre diversas guerras, guerras pessoais e contra o sistema. O primeiro bloco conta ainda com ‘Woman’, ‘Two Worlds Apart’ e ‘I love You, I Hate You’. A primeira, é uma homenagem às mulheres e tem o bom feat com Cleo Sol representando participações que, como um todo, são bem escolhidas e distribuídas em músicas que não se destacam por si só como ‘Woman’, monótona em relação às demais. 

Já ‘I Love You, I Hate You’, surpreende. Simples e direta, fala da relação de Simz com seu pai que com certeza muita gente pode se identificar e se emocionar ao ouvir. Dramático, o som, tanto em sua lírica como em sua melodia, mostra a relação de amor e ódio envolvendo a paternidade num instrumental de rock alternativo/rap rock de baixo marcante com uma orquestra que entra em alguns momentos junto vozes e violino. O interlúdio que se segue, com a voz do seu pai, fecha o primeiro bloco do álbum.

O segundo bloco se inicia com ‘Little Q pt. 2’. A música não é tão complexa instrumentalmente como as outras, mas narra momentos emocionantes trazendo  memórias da infância de Little Simz. No segundo verso, ela narra uma experiência de esfaqueamento e é visível como consegue transmitir emoções em seus versos de uma maneira rica em detalhes e sem perder nenhuma linha no tempo da música, com uma lírica invejável. Além disso, o couro de criança ao fundo amplifica a atmosfera nostálgica.

Shit changed when I had a brief encounter with death

Thought the pearly gates opened when that knife was in my chest 

Not the mental scars the scars physicals all you see 

But the boy that stabbed me is just as damaged as me 

I could’ve been the reflection that he hated 

The part of him he wishes God did not waste time creating 

The broken homes in which were coming from but who’s the blame when

Your dealt the same cards from the system your enslaved in 

It’s fucking mayhem

Saindo da atmosfera nostálgica e fantasiosa anterior,  o álbum também se instaura no mundo externo e real. Em ‘Speed’, sua sonoridade dá  uma sensação de corrida com um rap rock marcado nos baixos e baterias, à la Red Hot Chilli Peppers. Nessa atmosfera, Little Simz se coloca como a rapper influente que é e fala sobre a concorrência no mundo da música, comparando-se a até mesmo Kanye WestTrazendo agora uma composição mais leve e sarcástica, a cantora mostra seu outro lado mais irreverente ao colocar as dores de lado e mostrar o que sabe do seu potencial e talento acima da média. No fim da música, um sintetizador seguido de violino entra de surpresa e dá um ar sofisticado à track.

Já em ‘Standing Ovation’, Simz fala novamente sobre as pressões da sociedade, mas o instrumental carregado deixa uma atmosfera bagunçada que não funciona tão bem como ocorreu em ‘Introvert’. Dessa forma, a música não se destaca apesar das problemáticas trazidas na letra, sobre o desespero por aceitação, dinheiro e a vontade de ser recompensada, elevar o nível e abrir portas a pessoas que nem ela. Boa mensagem? Sim, mas, nesse momento aproximando-se do centro do álbum, surgem músicas medianas em relação ao início e às últimas, como por exemplo o neosoul ‘I See you’. 

Os interlúdios, que numa primeira audição parecem exagerados, nas audições que seguem se apropriam de sentidos e transições pertinentes, isso recai sobre a importância do álbum ser ouvido em sua ordem, pois fora dela pode parecer bagunçado em seu conceito. Além disso, os corais e orquestras são usados nos interlúdios e nas músicas, assessorando a atmosfera tradicional e moderna do álbum.  Essa ponte de interlúdio com ‘I See You’, por outro lado, leva a uma atmosfera totalmente diferente, ‘Rollin Stone’ é um drill que vira trap, com letra carregada de sarcasmo e um espírito global, o que se destaca nela é esse beat muito bem produzido e diferente dos demais que viam apresentando instrumentos mais orgânicos. Nesse momento do álbum, Simz decide mostrar que não há ritmo que ela não consiga rimar em cima, já que em ‘Protect My Energy’ ela manda rimas sobre um house misturado com disco. A proposta é ambiciosa e bem executada, mas, contextualizada, trata-se facilmente de um descarte do projeto, já que não tem nada a ver como as demais músicas. 

O interlúdio ‘Never Make Promisses’ leva para um dos destaques e também a segunda melhor faixa do álbum, ‘Point And Kill’, feat. Obongjayar, artista nigeriano radicado em Londres. De tradição iorubá, descendente de nigerianos, Simz trás um afrobeat na 15ª track. A música é boa do seu início ao fim, com o cantor entrando já com um refrão memorável, os versos são curtos mas suficientes, como num jogo de pergunta e respostas (característica do afrobeat), direcionando-se aos dois refrãos que culminam num solinho de trompete junto à percussão e o baixo, deixando a música ainda melhor. 

Sua sequência natural, ‘Fear No Man’, traz uma rima menos melódica em cima também de um afrobeat e fala sobre grandeza e conhecimento, o refrão são vozes de mulheres tradicionais. O fato de ser uma rapper falando sobre grandeza num instrumental que não é trap mostra o quanto a cantora é diferenciada no que faz e como alternar a ritmicidade pode mudar a vibe de um trabalho que no início contava com atmosfera mais sombria.

Assim, ‘The Garden Interlude’ direciona o ouvinte para as duas últimas músicas que resgatam as ideias mais intimistas do princípio do projeto, com ela falando de sua história e conquistas, mas agora, no entanto, em beats mais tranquilos e serenos. Novamente, ela lembra sua trajetória, em ‘How Did You Get Here’ e, em ‘Miss Understood’, fala sobre problemas familiares com a irmã e sua distância. Bom, são músicas poderiam facilmente serem descartadas, já que o álbum é bastante longo e, hoje em dia 19 tracks, é um número bem incomum. No entanto, elas proporcionam essa mensagem cíclica que, apesar da fama e sucesso comercial, há muito mais a ser alcançado na vida de um artista, existem feridas que muitas vezes não se fecham com a glória e que, além de uma pessoa pública, existe alguém humana. 

Sometimes I Might Be Introvert trata justamente sobre sair da superfície e mergulhar na mente de uma artista que se propõe a mostrar suas fragilidades. Com sonoridades ímpares em instrumentais de deixar inveja, uma composição nada simplista, oscilando entre diversas métricas, rimando formas e fonemas, abusando em storytellings de qualidade, o álbum consagra a MC dentre uma das maiores do mundo. De maneira geral, a artista mostra que sua criatividade conceitual, fruto de uma mente brilhante para o seu tempo, ainda não se esgotou, pelo contrário, está muito longe disso.  Apesar de algumas músicas que poderiam ter sido realocadas em outros projetos, o álbum não se esgota nem fica ruim, algo que seria impossível, pois, ao ouvir Little Simz, além de notar sua genialidade artística, o ouvinte de coração aberto irá se emocionar e se inspirar como nunca antes, e isso é maior, até mesmo, que a longa duração do álbum. 

 

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