“Sinto que muito do meu trabalho tem sido uma espécie de antologia ao meu bairro e meu passado, acho que é hora de dar um fim nisso.” Como bem disse Vince, em uma entrevista para a rádio HOT97’, toda sua carreira, suas letras e personalidade têm carregado forte influência de seu período vivido em Long Beach, Califórnia. “Ramona Park Broke My Heart” é o quinto álbum de estúdio do rapper e promete cortar o cordão umbilical entre ele e seu passado, para assim finalmente dar o próximo passo de sua trajetória.
A VIDA EM LBC
Certamente, para quem vive longe do convívio Californiano, imagina que a cidade de Long Beach, região metropolitana de Los Angeles, seja parte do pacote “Sonho Americano” de que tantos nacionalistas se orgulham, mas a realidade é bem diferente: o local também é muito conhecido pelo seu alto índice de criminalidade e atividade de gangues. Embora o porto e o aquário do pacífico sejam lindos, essa parte obscura que aflige os habitantes da Longa Praia, nos leva à área demográfica de Ramona Park, no lado norte da cidade.
Apesar de ter nascido em Compton, a maior parte de sua infância e adolescência foi vivenciada em LBC e desde cedo até a sua juventude, Vince teve que conviver em meio a tudo de negativo que cercava seu bairro, “Todo mundo é um assassino”, “Eu sinto que todos são caguetas” são as primeiras palavras dele ao abrir o disco com a intro “The Beach”. E como se já não bastasse ter uma infância desprovida de qualquer inocência, ele observou de perto seus amigos e chegados irem para o sistema carcerário cedo demais, para processar e entender o meio no qual eles estavam envolvidos; onde gritar “Libertem meus parceiros” era uma frase comum em sua juvenilidade.
E foi ali, naquele bairro, onde ele teve que abdicar de toda pureza e se tornar, para sempre, uma pessoa moldada pelo comportamento “gangsta” de sua área. A experiência proposta pelo álbum é justamente mostrar, de diversos ângulos e perspectivas, a vivência que o levou a aprender sobre o quanto essa jornada foi, e é prejudicial às crianças e adolescentes que estão inseridos em lugares parecidos com Ramona Park.
Obsessão, paranoia e toxicidade
É extremamente difícil para alguém que cresceu ao redor de muito carinho e afeto de sua família, entender que às vezes, nas ruas, quando o calo aperta e o perigo urge, a única coisa em que se pode confiar é em sua arma. Desde cedo, você é ensinado a se proteger para poder sobreviver, pagar suas contas e até mesmo comer, como o rapper diz no interlúdio “Nameless”, que abre alas para a melhor canção do disco, “When Sparks Fly”. Nela, o rapper descreve de forma muito detalhada a relação quase que de paixão por sua arma, dando até mesmo a entender que ele estaria se declarando para alguém, ou algo do tipo. O sample de “No Love” da cantora Lyves, cai como uma luva, entregando o clima de romance que causa o impacto necessário no ouvinte.
Se o relacionamento com sua arma já parecia obsessivo o bastante, o dinheiro não fica nada atrás. Em “Papercuts”, o MC deixa claro o quanto a perseguição pelo sucesso financeiro o tornou uma pessoa fria, que mal consegue manter uma conversa casual com um amigo, se grana não for o assunto principal, o que é mais um indício do quanto a exposição à pobreza, pode causar traumas irreparáveis. Mesmo que ele esteja vivendo um sonho, colhendo os frutos de sua fama e sucesso, a mentalidade desenvolvida lá no passado é a mesma. Já em “Mama’s Boy”, ele aborda o dinheiro de uma outra perspectiva, pegando como exemplo uma mãe, e como a falta de condições financeiras afeta a criação e a educação nos bairros pobres, obrigando filhos serem instruídos pelas ruas e não por sua família, que por sua vez, precisa trabalhar três vezes mais para prover a sustentação de seus herdeiros.
Outra mácula que Vince acabou desenvolvendo em seu passado, é o problema em se relacionar com mulheres. Em “Player Ways”, ele revela uma série de traços superficiais que o tornam uma pessoa livre de qualquer sentimento profundamente afetuoso por outra pessoa, embora no fim da faixa, junto a um depoimento genérico dado por uma mulher, ele reconheça o quanto isso é prejudicial a ele e principalmente às pessoas com a qual ele se envolve emocionalmente.
Os melhores momentos do disco são sensacionais. Instrumentais no ponto certo, muito groove, sintetizadores e refrãos memoráveis, causando até mesmo um sentimento nostálgico. Houve claramente um cuidado maior ao criar linhas e wordplays efetivas para essas faixas, que evidenciam uma melhora tanto na escrita quanto no corpo das músicas, tornando-as relevantes para o contexto do disco e igualmente eficaz fora dele.
Num geral, apesar do disco parecer “sonolento”, com batidas espaçadas e ritmo desacelerado, é importante observar como Vince se comporta bem rimando nesse estilo. O trabalho anterior claramente deixou marcas na personalidade sonora do rapper, abusando de versões modificadas eletronicamente de instrumentos como baixo e bateria. O sintetizador, piano e os diversos momentos onde os produtores usam efeitos sonoros, como o som da praia e fogos de artifícios, ajudam a construir a atmosfera vintage das canções.
Coração partido
Embora tudo até aqui demonstre uma preocupação com a parte técnica, produção e conteúdo principalmente, o disco não é um mar de rosas e sente com a falta de foco e entrega do rapper. O que apontava para ser um dos melhores projetos do primeiro semestre, acabou tropeçando em sua própria proposta, tornando a audição completa em algo dispensável. Ainda que todas faixas cumpram seu papel de dar contexto às diversas características que tornaram Vince Staples a pessoa que ele é hoje, algumas faixas são tão preguiçosas e desanimadas que atrapalham muito o flow do álbum. Um exemplo disso é “Dj Quik”, que apesar da boa e singela homenagem ao lendário DJ de Compton, é tão espaçada, com uma batida e um flow tão entediante, que parece algo feito sem o consentimento do seu produtor, apesar do ótimo sample de “Dollaz + Sense”.
Outra faixa desprovida de bom senso é “Lemonade”, que conta com a participação de Ty Dolla $ign, o problema começa pela performance do anfitrião que resolve segurar o refrão mesmo tendo na faixa alguém que faz isso com maestria, e vai se arrastando com um beat que não oferece nada além de simplicidade. A lista segue com “East Point Prayer” onde Lil Baby faz o mínimo e ainda assim consegue roubar a atenção da track; e “Bang That”, que não tem metade do charme e relevância das outras canções.
Algumas ficam no meio do caminho, com pontos altos e baixos como “Magic”, que lembra a vibe das batidas de São Francisco no começo dos anos 2000’, “Slide”, com seu refrão repetitivo, apesar de ter dois bons versos e “Rose Street”, que acaba perdendo o impacto por estar tão no fim do álbum que tudo que o rapper diz ali, você sente já ter ouvido em alguma música anterior. Mas ele compensa encerrando com a excelente “The Blues”.
Êxito?
Como se espera de todo “último” capítulo de qualquer coisa, era a hora de trazer intensidade e riqueza de detalhes, entrar como um hospedeiro na mente do rapper e vivenciar as desilusões e aprendizados que ele obteve aos longos dos anos que viveu cercado por violência, pobreza, gangues, drogas e brutalidade policial. Toda experiência vivida aqui, carrega consigo a mesma produção sutil e humor, somado a uma versão estendida do conteúdo apresentado no seu último álbum, auto intitulado “Vince Staples”. Absolutamente, nada aqui lembra os projetos anteriores do MC, repletos de beats e flows experimentais como “Big Fish Theory” ou até mesmo o EP “Prima Donna”. A atmosfera é leve, pop e apesar das letras serem o contrário disso, existe uma clara mudança de estilo em Vince.
Porém o que ficou claro, é que o rapper ainda não sabe preencher os vazios de um álbum de 16 faixas, entender que não é preciso colar uma sonoridade nas canções e privá-las de algo que ele mesmo já fez muito bem: inovar nos instrumentais, dando outra cara para faixas que liricamente não tem muito a acrescentar. E apesar da falta de intensidade do disco, ele tem ótimos momentos e músicas que vão marcar sua carreira positivamente.
Vince Staples está aprendendo e se aproximando do que seria o disco ideal, sem esquecer que ele ainda é o artista que lançou “Summertime 06’”, um dos melhores discos de rap da década passada. Por isso, ainda existe muita esperança para que ele repita a dose, agora mais maduro, consciente e claro, influente.
Melhores faixas: When Sparks Fly, AYE (Free the Homies), Papercuts, Player Ways, Mama’s Boy e The Blues.