Review: Run The Jewels – RTJ4

Jay-Z. Essa é a lista completa de rappers ativos com 45 anos ou mais mantendo ainda uma consistência em alto nível além de El-P e Killer Mike, ambos integrantes do duo Run The Jewels. O sucesso da dupla deve ser ainda mais aclamada se vista a improbabilidade do par: El-P sempre foi um ícone do hip hop alternativo em New York, abrindo caminho pra diversas tendências e artistas (como sonoridades que permitiriam o surgimento de por exemplo Death Grips ou o álbum “Yeezus”), enquanto Killer Mike vem de uma vivência do mundo do tráfico em Atlanta e é um grande militante da causa negra. Como dupla, RTJ tem atualmente a segunda média mais alta de artistas de rap no metacritic, atrás apenas de Kendrick Lamar. Vindo de três álbuns aclamados por crítica e público, Jaime e Michael lançaram agora em 2020 o melhor trabalho de suas carreiras.

RTJ4 pode não pisar em territórios desconhecidos para a dupla ou trazer algo totalmente revolucionário, mas com toda certeza é diferente dos projetos anteriores. Embora seja altamente político, e nessa temática encontre seus melhores versos, o álbum não foca toda sua escrita sobre esse mesmo assunto tal qual o seu antecessor, assim como não gasta uma música inteira pra falar sobre sexo oral (apresenta quase total ausência de piadas sexuais) como feito no segundo projeto; indo além nas comparações, embora bastante experimental e diverso, não varia entre músicas mais rápidas e lentas, recurso comum nos trabalhos anteriores, dessa vez não há espaço para calmaria. Esse álbum traz banger após banger, com uma produção totalmente elétrica e infectante do começo ao fim.

“yankee and the brave (ep. 4)” é, além de uma perfeita introdução ao álbum mostrando a produção que tomará conta do disco, uma reintrodução ao grupo. Quando no primeiro verso do disco Mike diz “Back at it like a crack addictMr. Black Magic/ Crack a bitch back, chiropractic, Craftmatic”, você imediatamente se lembra da força, o carisma e a técnica que marcou o MC; El-P, além do ótimo beat, dá o tom com excelentes versos, mostrando o jogo de palavras e o humor que lhe garantem notoriedade como rapper. Além dos destaques individuais, a estrutura dessa introdução espelha o disco como um todo: ambos os MCs, em completa harmonia, trocam passes em versos curtos entre si, ou ainda, auxiliam um ao verso do outro. RTJ4 é como um filme de Christopher Nolan: um segundo de desatenção e você perdeu algo importante.

É impressionante que o álbum estava sendo construído nos últimos meses e não foi algo feito nas últimas semanas. Em meio ao levante da população negra estadunidense e protestos tomando conta do país, esse projeto não poderia ter um timing melhor. No anúncio do adiantamento do disco, a dupla disse: “o mundo está infectado com muita merda agora, então aqui tem algo cru pra se ouvir enquanto lidam com tudo isso. Esperamos que possa trazer alguma alegria”, o que é perfeito para o que traz o álbum: músicas que variam entre protestos contra a sociedade, política, racismo e mídias a até braggadocios fortes e bom humor, com sonoridades pra se balançar a cabeça e curtir em qualquer festa. Muitas vezes esses extremos se unem como na ótima “JU$T”, que conta com participações de Pharrell e Zack De La Rocha, vocalista da icônica banda Rage Against The Machine. O refrão não é dos melhores mas o beat e a alta energia dos versos (sobretudo de El P e Zack) compõem uma faixa que poderia muito bem ser um hit, enquanto se grita o refrão em protesto “look at all these slave masters posin’ on your dollars”.

O principal do disco é que ele nunca fica sequer perto de estagnar. Os beats colocam sempre padrões de loops que tomam a frente enquanto o incêndio acontece no fundo, com cada audição dando uma percepção de algum novo elemento. Isso sempre dura pouco, já que a maioria das faixas mostra beat switches feitos com uma suavidade impressionante. Uma das melhores tracks, “goonies vs. E.T.”, apresenta diversas viradas e uma progressão maluca no final. “ooh la la” traz baterias de fundo incríveis e DJ Premier dominando os scratches em um instrumental feito sampleando “DWICKY” do Gangstarr, produzido pelo próprio Premier. Outro excelente exemplo é “the ground below”, onde, com auxílio de Little Shalimar e Wilder Zoby, frequentes colaboradores do duo, a produção parece como se feita por uma banda de nu metal, com um ótimo refrão para bater cabeça. Quando vejo El-P (e The Alchemist) dando ao hip-hop esse tipo de beat, penso que essa é a função dos brancos na luta contra o racismo (brincadeira, batam num racista e apoiem a nossa luta).

Além da melhor produção de todos os discos, RTJ4 mostra os dois rappers com seus S-games (A game não é o suficiente para o que fazem aqui). Sem gastar tempo com punchlines juvenis e com a caneta mais afiada do que nunca, El P vai cabeça a cabeça com Mike, sendo o melhor na técnica acima de um astro nesse aspecto (ambos rimam em torno de 65% das suas palavras, o que é um número absurdo) , enquanto seu companheiro apresenta os flows mais pesados e é quem diz as coisas mais impactante. Em “walking in the snow”, uma das melhores faixas do disco, Mike traz na segunda parte da track o mais impactante verso do álbum e do ano até aqui:

The way I see it, you’re probably freest from the ages one to four
Around the age of five you’re shipped away for your body to be stored
They promise education, but really they give you tests and scores
And they predictin’ prison population by who scoring the lowest
And usually the lowest scores the poorest and they look like me

And every day on evening news they feed you fear for free
And you so numb you watch the cops choke out a man like me
And ‘til my voice goes from a shriek to whisper, “I can’t breathe”
And you sit there in the house on couch and watch it on TV
The most you give’s a Twitter rant and call it a tragedy

But truly the travesty, you’ve been robbed of your empathy
Replaced it with apathy, I wish I could magically
Fast forward the future so then you can face it
And see how fucked up it’ll be.

O mais bizarro é que as linhas destacadas são uma referência ao assassinato de Eric Garner em 2014 por parte da polícia americana, citando as mesmas palavras que ecoam na mente de todo negro hoje ditas por George Floyd, antes de ser assassinado por um policial branco. A repetição da brutalidade policial é um tema recorrente durante todo o disco, com Mike sendo sempre pontual em suas críticas.

O projeto só diminui a voltagem na sua última parte, sendo inclusive as únicas faixas em que os dois artistas atuam separadamente. “pulling the pin” é uma faixa mais reflexiva, onde o duo usa com genialidade metáforas de histórias judaico-cristãs para tecer críticas ao capitalismo, tendo a lendária cantora de R&B e ativista Mavis Staple comandando o refrão mais potente do disco, além de dar um peso emocional que a produção mais forte vinha segurando nas nove canções anteriores, enquanto os versos tem os flows mais contidos do projeto. Esse mesmo clima segue na última faixa, “a few words for the firing squad (radiation)”, de produção absurdamente dramática, remetendo a um progrock com a forma que a tensão é levada ao fim. Nessa track ambos trazem seus versos mais pessoais do álbum, com desabafos e definição de prioridades, como no primeiro verso de Mike:

It’d be a lie if I told you that I ever disdained the fortune and fame
But the presence of the pleasure never abstained me from any of the pain
When my mother transitioned to another plane, I was sitting on a plane
Tellin’ her to hold on, and she tried hard, but she just couldn’t hang
Been two years, truth is I’ll probably never be the same

Dead serious, it’s a chore not to let myself go insane.

E também sobrando palavras de força, vistas no segundo verso de El-P:

For the holders of a shred of heart even when you wanna fall apart
When you’re surrounded by the fog, treadin’ water in the ice cold dark
When they got you feelin’ like a fox runnin’ from another pack of dogs
Put the pistol and the fist up in the air, we are there, swear to God.

O beat conta com um sax no fundo que contribui para a progressão crescente chegando ao clímax com Mike, ponto crítico onde o MC cospe as últimas palavras dos artistas no disco, antes de uma linda outro com solo de saxofone: “fuck you too”.

Quem acompanha meus textos sabe que eu guardo o antepenúltimo ou penúltimo paragrafo para pontuar os defeitos em álbuns desse calibre, mas este já é o último. Sem reais defeitos e apenas um ou outro momento “não tão bom”, RTJ4 traz o melhor que já vimos dos dois artistas: as melhores produções de El-P e seus colaboradores, os melhores flows e principalmente a melhor, mais focada e mais consistente caneta de ambos. Não pode ser subestimado que, aos 45 anos, a maioria dos rappers aproveita sua aposentadoria e aparece uma vez a cada 5 anos com um feature, enquanto os dois vivem seu auge. RTJ4 não é só o melhor álbum do Run The Jewels e também não é apenas o melhor álbum de 2020 até então; é o melhor álbum de rap dos últimos dois anos e estaria na disputa para ser o melhor álbum lançado desde “To Pimp A Butterfly”. Temos aqui uma obra quase perfeita. Assim como El-P e Killer Mike, espero que te traga alguma alegria.

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