Nunca foi difícil de dizer – Três décadas de Illmatic.

Em meio a um cenário efervescente, emergiu das ruas do Queens um jovem MC disposto a marcar para sempre a história dos rap.

Por Matheus Malerbo

 Há três décadas, o panorama musical de Nova York testemunhava um renascimento após a explosão do G-Funk na costa oeste dos Estados Unidos. Em meio a esse cenário efervescente, um jovem de apenas 19 anos, Nasir Bin Olu Dara Jones, mais conhecido como Nas, emergiu das ruas do Queens e se juntou à DJ Premier para deixar sua marca inesquecível na história do rap. Nascido em uma família com profundas raízes musicais, Nas herdou a paixão pela arte de seu pai, Olu Dara, um renomado cornetista, guitarrista e cantor de jazz. No entanto, foi a vida difícil e muitas vezes violenta nos conjuntos habitacionais do Queens que o levou a buscar refúgio na música, encontrando no rap uma voz para expressar as realidades cruas e complexas de sua comunidade.

MC, jornalista ou poeta?

 Em 1991, Nas deu seus primeiros passos na cena do rap ao contribuir com versos marcantes para a faixa “Live From the Barbecue”, do grupo Main Source. Essa colaboração precoce, sob a tutela do produtor Large Professor, foi um sinal claro de seu talento excepcional e de seu potencial para se tornar uma força dominante no hip-hop, foi como ver o game-winner do Michael Jordan contra Georgetown em 82’, o verdadeiro prenúncio de uma estrela. No ano seguinte, Large Professor, reconhecendo o brilho incandescente de Nas, ofereceu-lhe sua primeira batida, resultando no lançamento do aclamado single “Halftime”. As letras afiadas e o flow inconfundível de Nas já demonstravam uma maturidade artística, marcando-o como uma promessa inegável no mundo do rap.

 A partir daí, o rapper foi rapidamente atraído pela Columbia Records, uma gravadora já estabelecida no cenário do rap graças ao sucesso do grupo A Tribe Called Quest. Sua ascensão meteórica marcou o início de uma jornada para criar o que viria a ser considerado um dos álbuns mais importantes da história do hip-hop: “Illmatic”.

 O papel fundamental de DJ Premier, um dos produtores mais influentes da época, na concepção de “Illmatic” não pode ser subestimado. Sua parceria com Nas trouxe à tona o melhor do rap da Costa Leste, fundindo batidas distintas com letras afiadas e reflexivas. A colaboração entre Nas e DJ Premier representou a convergência de dois gênios criativos, cada um trazendo sua perspectiva única para a mesa e elevando o álbum a novos patamares de excelência artística.

 Enfim, em 19 de abril de 1994, as ruas receberam sua benção. E através de rimas e batidas, Nas acabava de cimentar seu nome para sempre no hall da fama da cultura hip-hop. Assim como na Bíblia, uma profecia; veio a calhar que a abertura do disco se chamasse “The Genesis”, uma curta “jam” com trechos do seu verso em “Live From The Barbecue”, sons das ruas, que incluem conversas, trens, ruídos e multidões, recriando a atmosfera nova-iorquina e fornecendo um singelo vislumbre das histórias urbanas que serão exploradas ao longo do disco. Na sequência, “N.Y State of Mind”, o hino das ruas sangrentas de Queensbridge. Quando falamos de detalhe, poucos conseguem alcançar o nível que Nas alcançou enquanto escrevia essa letra que mais parece vir do roteiro de “Boyz N The Hood”, utilizando técnicas multissilábicas e um flow incomparável. Além de tudo isso, Dj Premier se encarregou de produzir o que talvez seja a melhor batida de todos os tempos. Habemus um clássico.

 Em “Life’s a Bitch”, o rapper usa uma abordagem mais introspectiva, falando sobre a natureza súbita da vida, criminalidade e a violência das ruas. A profundidade que ele dá ao tema surpreende, principalmente pela sua pouca idade; a visão do universo à sua volta faz dele um homem especial e necessário para sua comunidade. A faixa também conta com a participação de seu pai Olu Dara e do rapper AZ, que, graças a este verso, conseguiu chamar a atenção da gravadora EMI, que, no ano seguinte, lhe deu um contrato, permitindo que ele lançasse seu primeiro disco “Doe or Die”. A produção ficou por conta do lendário produtor L.E.S, que cresceu com Nas e ganhou muita notoriedade após essa aparição.

 Outros grandes produtores também participaram do álbum, como Pete Rock na emblemática “The World is Yours”, e Q-Tip (A Tribe Called Quest) em “One Love”, que, curiosamente, são momentos de mais positividade do projeto. Seja inserindo uma dose de empoderamento a seus ouvintes ou escrevendo uma carta imaginária para um amigo na cadeia, o rapper sempre consegue se sobressair quando o assunto é inteligência emocional e poesia.

 “Memory Lane (Sittin’ in da Park)” é o capítulo nostálgico onde Nas se reencontra com algumas memórias de infância e reflete sobre como todos aqueles momentos vivendo naquele ambiente hostil moldaram suas características e personalidade. As imagens que ele pinta com as palavras são algo que não dá para descrever, ou melhor, apenas ele conseguiria descrever. O último terço do disco começa com “One Time 4 Your Mind”, que é um dos poucos momentos onde o rapper não foca em nenhum tema específico e apenas faz um exercício lírico, para mostrar suas rimas habilidosas e flow cativante.

 Mas é em “Represent” que sua habilidade é melhor aproveitada, a cadência e autenticidade de seu flow misturado ao beat pegajoso do Preemo fazem da faixa presença obrigatória em qualquer playlist de boom bap dos últimos 30 anos. Química pura. Uma curiosidade é que as vozes que se ouvem durante a música são de uma galera que Nas convidou para dentro da cabine na hora de gravar, imagine o trabalho do engenheiro de som para organizar tudo isso…

 O encerramento não poderia ser mais emblemático, “It Ain’t Hard to Tell” encapsula toda a essência do disco até aqui, destacando todo talento do rapper em rimar, contar histórias e transmitir emoções dentro de suas metáforas e jogos de palavras. É o fim de um rolê pelo Queens, através dos olhos do seu mais ilustre morador.

  Hoje, após três décadas desde o lançamento de “Illmatic”, seu legado permanece tão relevante e poderoso como sempre. Este álbum seminal não apenas definiu uma era no hip-hop, mas também inspirou gerações de artistas e entusiastas da música. Sua influência ressoa não apenas nas ruas do Queens, mas em todo o mundo, servindo como um testemunho duradouro do poder transformador da cultura hip-hop.

 

 “Illmatic” não é apenas um disco de rap; é uma obra-prima que transcende o gênero, capturando a essência crua e inabalável da experiência humana. Ao longo de suas faixas atemporais, Nas nos guia quase que de forma jornalística por um passeio pela vida nas ruas de Nova York, pintando retratos vívidos de amor, perda, triunfo e tragédia. É uma cápsula do tempo que nos transporta de volta a uma era de ouro do rap, ao mesmo tempo em que nos desafia a refletir sobre questões que permanecem urgentes e relevantes até os dias de hoje. É um testemunho da resiliência e da criatividade humana em meio ao caos, uma ode à força e perseverança encontradas nas comunidades marginalizadas. Também é uma lembrança poderosa da capacidade de impactar o pensamento comum dos guetos, trazendo perspectiva para os esquecidos e luz para determinados. Portanto, nunca foi difícil de dizer que este é sim o melhor álbum de rap de todos os tempos.

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