Review: Inquérito – iSOLamento

Salve, JH aqui. Renan Inquérito é um dos raros nomes com mais de 20 anos de caminhada no rap nacional que continua produzindo sua arte. Dono de uma grande carreira desde a fundação do grupo Inquérito, com indicações e vitórias no saudoso Prêmio Hutúz, além de já nos ter entregue grandes projetos, Inquérito tem seu nome marcado da história da nossa arte. O artista traz agora seu oitavo trabalho, sendo o terceiro em três anos, números pouco vistos a essa altura.

Renan é uma das pessoas mais interessantes do nosso hip-hop. Sendo já um professor, doutor (doutor mesmo, daqueles que tem doutorado, sabe?) e poeta, tudo o que adquiriu nesses caminhos é colocado para jogo em “iSOLamento”, o seu (como nos acostumamos a ouvir recentemente) ‘álbum de quarentena’, um trabalho completamente produzido e apoiado tematicamente no isolamento provocado pela pandemia. Em geral, tivemos trabalhos que deixaram (às vezes muito) a desejar, principalmente pela superficialidade com que a temática era tratada; tentando se livrar da áurea de ‘tiozão’ do rap, Renan entrega, embora com falhas, um dos mais interessantes projetos com esta etiqueta.

A faceta poeta de Renan abre o álbum com “Primavera Pandemia”, um poema declamado pela pequena Liah Vitória, que, com apenas 7 anos, já está dando seus primeiros passos no hip-hop. A faixa faz bem a função de ambientação do disco e abre portas para o que vem na sequência, tendo como sua última linha o título da track seguinte, “A Vida Vale Ouro”. Esta canção, que traz influências de trap, funk e do pagodão baiano numa bela produção de outro membro fundador do grupo Inquérito, Pop Black (que é uma ausência na voz desse projeto), é simples, rápida e direta para passar sua mensagem mais positiva e traz uma boa caneta de Renan.

A simplicidade é deixada de lado e “Saudade Do Futuro” se mostra com uma abordagem um pouco mais complexa, ao misturar passado e futuro para explanar o sentimento causado pela pandemia e sua posição no rap, ao mesmo tempo que tenta entender a realidade dos dias atuais na música (“Youtubers de 11 ano ensinando o que é rap/ Pode crê!/ Só que hoje é pode pá, podcast”). O MC lida com o sentimento de saudades da normalidade retirada pelo coronavirus, mesmo sabendo que o que ele terá no futuro será algo diferente do que ele realmente sente falta (o famigerado novo normal). Os versos, que oscilam ao longo da faixa, passeiam num beat que também faz esse elo com o que se produz atualmente, caminha para um forte lo-fi que poderia ser visto no catálogo de vários artistas mais jovens.

Essa estética é mais bem explorada ainda em “Amor É Causa”, o primeiro single do disco e também seu ponto mais alto. O excelente beat, construído por Pop Black em cima de um belo loop de piano e o sax de Índio, dá pano de fundo a uma atmosfera mais intimista para o verso único de Renan, destacando-se como o melhor do projeto ao passear com suas costumeiras metáforas que comparam o amor à loucura da cidade de São Paulo, trazendo características mais poéticas para o seu rap (além de declamar uma parte de uma poesia na saída).

Por isso o amor é: centro de São Paulo, 6 da tarde, hora do rush
Véspera de feriado, é vendaval, é crush
Cada um num sentido, uns perdido, outros achado
Confuso, maluco, caótico, congestionado
Uns devagar, outros com pressa, o amor é memo via expressa
Às vezes flui, às vez engessa, sempre tem alguém que estressa
Não dá seta, entra com tudo e a buzina não funciona
De repente um acidente: a vida estaciona

“Poesia de Parabrisa” é um interlúdio onde o artista declama uma poesia para encerrar o primeiro ato do trabalho e, infelizmente, acaba por aqui o que tem de mais proveitoso a oferecer. “Obrigado Pela Preferência” é uma faixa com pouca substância, com uma exaustiva repetição do título no refrão e um verso único que apenas busca jogos de palavras com peixes enquanto faz uma crítica social sem dizer muito, ao maior estilo “Fabio Brazza improvisando num programa da Globo”, pode funcionar ali, mas não muito num rap, principalmente vindo de alguém tão mais talentoso como é Inquérito.

No começo do texto, disse que ele estava “tentando” se livrar de uma aura de tiozao, mas, inevitavelmente, ele aparece com força na reta final (e não que Renan se envergonhe disso). “Pandemônio” começa com uma interpolação d’Os Flinstons falando sobre ‘saudades do rap da idade da pedra’, e a faixa basicamente cumpre aquela velha ideia de “meter um beat pesadão e mandar umas rima boladona”; embora o instrumental seja bom, a escrita, de pouco foco tópico, chega a níveis vergonhosos no segundo verso.

Vários passando pano enquanto outros tão passando Covid
Cloroquina como cocaína, passando vergonha à vista e nem divide
Uns pegando carona, outros pegando corona
Paramo’ de fazer rap, mano, paramo’; agora nós só leciona
Enquanto isso, a polícia mete com malícia a dancinha do medo
Vai sentando, vai sentando, sentando, sentando, sentando o dedo
No passinho da morte, vai na dancinha do medo

Vale destacar que Renan fala sobre passar pano na mesma faixa que diz, em sua primeira linha, “Sinistrão tipo um som do Chinaski, zóião que se lasque”. Enfim, né?

O duo de faixas boomer chega a outro péssimo ponto na track seguinte, “Inquérito Informa”. Nela, o MC lança a tediosa ideia de rimar iniciando todas as palavras com uma letra. A proposta era inovadora em 2000 quando GOG lançou “Brasil com P”, música que tinha uma mensagem central; foi pelo menos divertida quando o funkeiro MC Lon explorou com alguns singles como “Mundo M ou “Partido P”. Em 2020, isso não serve muito como amostra de habilidade (estou olhando para você, Oreia) e nessa track Renan acaba falando ‘nada com nada’.

I am iluminado, ianque illuminati
Invade Irã, invade Iraque
Ignorância, inadimplência, imprudência
Ilimitadas igual Internet
Impunidade, indiferença, incoerência
Impressionantes igual Ivete

O álbum termina com um Outro interessante, a faixa-título que traz as vozes de várias pessoas que, a pedido do artista, contam em poucas palavras suas experiências com a pandemia. São tempos muito difíceis e, mesmo que brevemente, é de grande alívio poder expor ao mundo como se sente e poder ouvir pessoas que passam pelo mesmo.

Renan é um homem muito sensível e hábil artisticamente. Ele se sai melhor quando de fato exerce isso, com produções, performances e escritas mais criativas, o que acontece na primeira parte do curto álbum; curto o suficiente para que o apelo a ideias ultrapassadas e desinteressantes, feito na reta final, tenha um impacto significativo na audição completa do disco.

É admirável a ideia de abrir o coração e mostrar ao mundo sua arte, no caso de Renan Inquérito, na música e poesia. Apesar de possuir uma história admirável e grandes ideias dentro e fora do rap, temos em “iSOLamento” um projeto inconsistente. Poderia, se restringido à primeira metade, ser um EP ótimo; mas em sua versão completa acaba sendo apenas um álbum ok.

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