Review: Bella Kahun – Crua

Salve, aqui quem fala é Diana aka Panther. Pela primeira vez estou oficialmente escrevendo aqui e nada mais justo que falar sobre Bella Kahun em nossa linha de reviews. Nascida e criada em Garanhuns, agreste de Pernambuco, Bella é cantora e compositora da PE Squad, produtora e gravadora de Olinda.  Aos 19 anos, está na pista com seu primeiro álbum intitulado “Crua”, depois de ter lançado apenas alguns singles soltos. A produção musical ficou por conta de Mazili, assessoria de Gaijin e parte visual por Rostand Costa, que desenvolveu, juntamente com Bella, uma atmosfera de bar que praticamente leva o ouvinte a esse ambiente, liberando todas as mágoas internas.

 

 

A capa, assinada pelas artistas Bea Simões e Niê Fagundes, compõe uma estética que casa muito bem com o conceito visceral do álbum. A escolha de uma ilustração trouxe ao trampo sentidos e interpretações múltiplas e válidas ao visual da música que deixa uma vontade de conhecer melhor tanto a artista como o cenário construído pela equipe. As rosas em duas fases, uma saudável e outra sangrando, ferida e rodeada de espinhos se relacionam com o teor do álbum que, apesar de trazer uma melancolia, não trata apenas de sentimentos ruins, mas justamente do sentir as diversas fases das relações e brincar com isso.

“Sorte” abre o projeto e também é o primeiro de uma trilogia de singles ao lado de “Boêmia” e “Cabaret”, as duas primeiras com clipes já lançados e divididos em atos, uma amostra da visão integral do projeto em que as peças se juntam para criar o conceito geral de ‘boêmia contemporânea’. Na parte visual de “Sorte”, Bella faz par romântico com Talula Mayim, drag de Álefe Passarin, numa cenografia repleta de um flerte que se reflete na letra acompanhada pela produção também em consonância com essa mesma atmosfera. Já a música, apesar de breve, embala do começo ao fim, trazendo um instrumental com nuances de brega bolero (tá feliz Reginaldo Rossi?).

Essa aposta feita em algumas canções por sonoridades tipicamente locais foi o ponto forte do disco, aparecendo também em outros momentos. A gente já vê aí uma prévia da organicidade exacerbada que o álbum carrega na percussão e metal carregado. O single menos recente dela, “Lance Casual”, tem um lado mais sintético e menos orgânico da cantora – que já doou sua voz até para música de eventos eletrônicos – demonstrando uma mudança de ares com relação ao que apontavam seus primeiros passos.   

A segunda música, “Moça de Bar”, começa com um pianinho que leva a um beat de trap com hat e kick fortes. Bella Kahun mostra, numa performance completamente orgânica, um vocal que não precisa de muito trabalho em cima ao aparentar uma afinação sem esforços. A faixa tem como seu ponto alto o encontro entre o vocal de Isabela e o trompete no final, dando um ar de melancolia que fecha a música bem. Pra quem viaja em R&B essa deve ser a favorita, com Bella surfando em um beat que traz uma mescla deste com o trap. Seria interessante, no entanto, encontrar no álbum mais dessas experimentações que ultrapassam o acústico.

“Romeu” é o total oposto da música anterior, com o violão acentuado de Moral, responsável pelos arranjos no segmento das cordas. Nas demais músicas, Moral vai encontrar maior liberdade, mas aqui o instrumento possui uma participação muito simples. O melhor da faixa é sua lírica que passa uma facilidade em compor, as palavras se encontram sem nada forçado, e os versos, apesar de não conter muitos floreios, destacam bem as paixões e subjetividades cotidianas, em suma, a track cumpre o que propõe sem trazer nada muito inventivo; assim como também se comportam “Espelho”, que se diferencia apenas pelo violão apostando mais em dedilhados, e “Mais Uma Pra Você”, que poderia explorar mais a parte sonora encontrada dentro dos singles prévios, com guitarras compondo o instrumental juntamente ao violão e métricas que buscam o blues.

Em “Verso Incerto”, Bella quebra um pouco as melodias, lança uma poesia em que se reafirma como mulher nordestina, critica as “tirações” de MCs da cena que não fortalecem outros corres e resgata as delícias e desafios de ser uma poeta, cantora e compositora interiorana. Ela se coloca nessa faixa como que compensando o cunho sentimental das músicas de uma maneira mais política.

O ouvinte, se já não se emocionou com memórias de amores passados, vai se emocionar com uma gravação de Bella cantando com seu pai ao final da poesia uma parte de “Boêmia”, que é justamente a próxima faixa. Nessa música a artista mistura o velho e o novo em um instrumental carregado de um brega puxado para dançar agarradinho. Na letra, Bella se dirige a um(a) interlocutor(a) de nome Boêmia, o que dá um ar de mistério à música, deixando ainda mais gostosa a atmosfera e imaginário da faixa (“Boemia/ não vou revelar teu nome/ Já és a história de outro homem/ não posso mais te cantar”), seguindo de uma guitarra que junto aos movimentos percussivos variantes dão a música o tom de estrela. Essa canção é certamente a principal do álbum e faz sentido compor o lugar central.

Em “Cabaret”, Bella canta que “não sabe falar de nada, muito menos sentimento”. Mentiu né? O que o disco mais traz é um mix de vários sentimentos (me lembra a frase dita no filme pernambucano Aquarius “toca Bethânia, mostra que tu é intenso”). Kahun também casa muito bem com essa passagem cinematográfica, em sua intensidade. O único defeito de “Cabaret” é ser curta, deixando um gosto de quero mais e a mente como que em um castelo (pensando nas brabas da vida, sabe?). A sonoridade carrega uma vibe que muito lembra “Você Não Me Ensinou a te Esquecer” de Caetano Veloso, se apoiando em uma percussão enérgica. Destaque para o tom progressivo da track, que entra em seu ápice mais perto do fim na voz impecável de Bella,  junto a uma guitarrinha e um violino que dão um toque especial e ultrapassam o ordinário. 

“Não Me Procure Mais” lembra a melodia de “As canções que você fez pra mim” de Maria Bethânia (sem muito margem para comparação). O instrumental, apesar de em geral ser muito simples, ganhou um “up” pelo seu arranjo mais elaborado, em tons de blues, com a música se encaminhando para um solinho com ar de rock progressivo, o que é ótimo apesar de seu encerramento brusco.

Essas buscas por sonoridades passadistas, como nas duas últimas faixas citadas, são fundamentais parar o ar de nostalgia que o álbum carrega, ao mesmo tempo em que se mostra bastante contemporâneo. O que afeta o geral são algumas músicas que beiram o clichê acústico, no entanto, seus destaques ocorrem com propriedade e eficiência em lírica, instrumentos (principalmente nas aparições da guitarra de Moral) e organicidade.

Pelo lado da produção da PE Squad, entende-se o quanto é importante a cantora e compositora ter ao seu redor pessoas que acreditem no seu trampo e ideias, a ponto de materializar um álbum coletivamente que foge do comercial da cena hip-hop atual. Estar em uma equipe que acredita nas várias potencialidades que ela tem, permite com o que o álbum brilhe e a cena preciso disso, pessoas que acreditam umas nas outras, principalmente nas cenas locais.

Em um panorama geral, a escolha dos singles foi fundamental, pois eles carregam o que o álbum tem de mais original, potencializando a visibilidade da obra apesar de apostar em ares acústicos mais simples por momentos. Nesse sentido, o álbum é bem produzido e tem seus altos e baixos de complexidade entre as músicas. Do lado da cantora, a forma como Bella coloca seus sentimentos na música é talento puro, a ser cada vez mais lapidado. Kahun tem muito ainda a mostrar, como primeiro projeto da carreira de alguém tão jovem, “Crua” é de se admirar. Sem dúvida nenhuma, vale a audição.

Review: Bella Kahun – Crua
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