Review: Kyan e Kayin – Bandido Fi Di Crente

Algumas expectativas continuam em aberto, mas a entrega de um disco de estreia sólido não se concretizou.

2020 foi um ano decisivo para Kyan. Aproveitando-se da boa recepção do single ‘Mandrake’, o rapper da Baixada Santista  se manteve produtivo o ano todo, entregando ótimas faixas como ‘Tropa da Lacoste’ e ‘Noiz É Ruim e o Cabelo Ajuda’ e ainda firmando parcerias com nomes de destaque como Dfideliz e Febem. Tudo isso ao lado de MU540, o talentoso beatmaker que sempre consegue impulsionar as  habilidades do MC no microfone. Se os dois foram incluídos – quando não vencedores –  em diversas listas de melhores do ano, era sinal de que tanto o público quanto a crítica tinham grandes expectativas para os próximos lançamentos que viriam.

Algumas delas continuam em aberto – pois as performances do MC em seus últimos singles se mantém enérgicas e MU540 ainda parece longe de um esgotamento criativo -, mas a entrega de um disco de estreia sólido não se concretiza em Bandido Fi Di Crente. Ao longo de seus 16 minutos, a mixtape de Kyan e seu irmão Kaiyn  parece trilhar vários caminhos ao mesmo tempo, mas sem muita preocupação em fazer com que eles se encontrem e consigam se potencializar. Mesmo havendo momentos interessantes em quase todas as faixas, a falta de uma coesão temática faz com que a maioria delas pareça mais distante do que deveria. Em outras palavras, é um disco colaborativo onde os MCs não colaboram entre si.

Isso beira a ser literal, pois apenas 2 das 8 faixas apresentam Kyan e Kayin no microfone (e é apenas na última track que ouvimos os dois rimando em versos de fato), mas esse problema se dá principalmente pela falta de desenvolvimento nos versos de cada um. A faixa que dá nome ao projeto, por exemplo, apresenta um Kayin num flow bem marcado, com linhas que aparentam contar uma história, mas logo se dilui para um braggadocio mais genérico até a chegada do refrão, cuja duração é quase igual a do verso. Algo semelhante ocorre em ‘O Crime’, que também usa uma batida de drill e vai abordando a criminalidade numa perspectiva mais consciente até se perder novamente em autoafirmações que pouco se conectam com o verso anterior.

Quanto a ‘O Menino Que Virou Deus’, não há como negar o potencial que a track tinha, seja por seu título ou pela habilidade que Kyan já havia demonstrado em aproveitar instrumentais melancólicos (como em seu Perfil na Pineapple), mas a repetição da palavra casa tanto nas barras como no refrão acabou tornando a promissora interpolação de ‘Junho de 94’ num mero detalhe. Se a faixa explorasse outros significados do termo, ou apresentasse rimas internas, ou pelo menos não terminasse repetindo 2 vezes o refrão, o uso da epístrofe poderia ter tido mais impacto. Como isso não ocorre, o momento mais ambicioso da mixtape é desperdiçado.

Nas faixas mais recreativas, como ‘Pão e Vinho’ e ‘Adidas’, o saldo é positivo. Na primeira, temos um beat de trapfunk mesclado com os graves abafados do drill criando uma boa dinâmica entre o refrão contagiante de Vulgo FK e a entrega áspera de Kaiyn, que aqui ainda se destaca pelas melhores linhas do trabalho (Já fui da lista dos procurado/ Hoje três listra, patrocinado). Já na previamente lançada ‘Adidas’, essa mescla de estilos é ainda mais enérgica pelos hi hats e graves acentuados, e pelas inúmeras mudanças de flow que ocorrem nos dois versos. Mesmo que nenhum deles contenha barras inspiradas, a variação na entrega de Kyan e MC Pedrinho e a curta duração da track impedem que o som fique monótono.

Por outro lado, ‘Feio Nunca’ e ‘Drake de Luxo’ são as faixas que mais enfraquecem o projeto. Não pelos instrumentais em si, mas pela exploração desinteressante que ambos os MCs fazem de seus relacionamentos. Num geral, é sempre um misto de criticar a objetificação que as mulheres da classe média/alta fazem dos corpos negros, e aceitá-la para se autoafirmar posteriormente. Mesmo que a entrega de Kyan em ‘Feio Nunca’ seja interessante por ser muito mais cantada que de costume, e Yunk Vino tenha recuperado com primor o excelente beat soturno de flauta desperdiçado por Kayin, elas acabam desandando quando chegam nas linhas sexuais.

Depois de “Trap de Cria” a branquinha entendeu a visão

Brotou querendo me dar. 

Ao recusar, ficou cheia de tesão.

Ei, coração, presta atenção,

Cê treme as perna enquanto eu te chupo

Quando eu levantar, se agita com a mão

Chegando finalmente em ‘Dono do Lugar’, temos o verdadeiro vislumbre de como funcionaria a entrega de cada um dos irmãos numa faixa colaborativa, e o resultado dá uma boa conclusão para a mixtape. Também produzida por MU540, que inclusive faz um ótimo trabalho ao dar protagonismo para certos elementos do beat quando o verso pede, a faixa apresenta o verso mais visceral de Kyan com linhas que reafirmam seu compromisso em honrar sua família e numa cadência que gera um bom contraste com o flow mais pausado de seu irmão. Kaiyn não chega a fazer feio rimando, mas sua falta de experiência acaba se tornando perceptível por alguns espaços deixados em seu verso e por soltar punchlines que simplesmente não condizem com a sua habilidade atual. De toda forma, é uma pena que a dinâmica dos dois tenha sido tão pouco explorada.

Se o objetivo de Bandido Fi Di Crente era apenas apresentar Kaiyn ao grande público, o trabalho foi um sucesso. Mas, se era para ser algo além disso, fica a sensação de que o projeto ficou pelo meio do caminho. Vai de temas que realmente mereciam um tratamento mais cuidadoso, seja pela complexidade deles ou pela força que eles poderiam ter; a faixas que são realmente passáveis, por tomarem um espaço de tempo que o próprio trabalho já não poderia desperdiçar, considerando a sua curta duração. Os acertos ainda se sobrepõem minimamente, em especial pelos instrumentais, mas não há como esconder a decepção. Depois de meses acertando hit atrás de hit, e sem grandes sacrifícios na escrita, era de se esperar um debut que também mostrasse até onde Kyan pode chegar. No entanto, o projeto não cumpre sequer as expectativas de um disco colaborativo. Diante disso, talvez seja cedo para afirmar “Eu e meu irmão tomamo’ o rap nacional”.

Melhores Faixas:  Pão e Vinho, Adidas e Dono do Lugar.

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