Review: Kawe – 7 dígitos

Em 7 Dígitos encontramos tudo o que é pedido em um “starter pack de trap genérico brasileiro”

Kawe é desses artistas que entenderam as mudanças no consumo de música nos últimos tempos, não à toa seu “surgimento” para a cena veio através do Tik Tok. Ano passado sua faixa ‘MDS’ com colaboração do MC Lele JP viralizou no aplicativo de vídeos de maneira colossal, e em poucos meses seus trabalhos já figuravam entre os mais ouvidos nos serviços de streaming. Após o boom da faixa, alguns feats foram lançados e era questão de tempo até que o MC lançasse seu primeiro projeto fechado e, no último dia 07, chegou às ruas seu debut intitulado 7 Dígitos. Nele, existe uma mística em torno do número 7, desde sua data e mês lançamento até o número de faixas. Segundo o MC, o numeral significa a quantidade de dígitos do milhão, um milhão de views e de ouvintes que Kawe alcançou nos últimos meses, tudo isso era um sonho pra ele.

Uma peculiaridade sobre o álbum é a duração de suas faixas, todas ficam entre 2 e 3 minutos, uma possível justificativa para isso é o fato de  estudos mostrarem que músicas mais curtas performam melhor no sentido financeiro dentro dos serviços de streaming, o que vem sendo uma tendência na indústria musical como um todo, independente do gênero. Quem tiver um interesse maior no assunto, recomendo a leitura do estudo “The economics of streaming is making songs shorter“ de Dan Kopf. Levando em consideração que Kawe é um artista antenado nessas mudanças, é bem provável que resida aí a principal motivação para a escolha. 

Em 7 Dígitos encontramos tudo o que é pedido em um “starter pack de trap genérico brasileiro”: marcas luxuosas, drogas, adlibs, rimas mesclando o inglês com português, Jordan, LV, wave e todas as outras características que já estamos cansados de ouvir. A faixa de abertura ‘Mclaren’ segue exatamente esse padrão, mas apesar disso, Kawe tem lapsos de uma boa técnica de escrita e arrisca algumas rimas internas, porém essas se perdem em meio a uma temática superficial e principalmente à falta de tempo para desenvolver seus versos.

Outra problemática do projeto é que, além das faixas serem curtas, seus refrãos são repetidos três vezes em quase toda oportunidade, fazendo com que o MC tenha menos de 50% de tempo hábil em sua música para demonstrar alguma qualidade na caneta, “Baby Investe” é um claro exemplo disso. Em uma love song padrão para álbuns que levam a sério a questão do apelo comercial, Kawe coloca um flow mais cantado para acompanhar a vibe que a música pede, mas, se já não fosse problema suficiente a atmosfera de estética genérica que predomina no projeto, a falta de originalidade ainda pode ser representada na composição desenvolvida, como a referência nunca usada antes em uma faixa desse tipo: “Pique Bonnie e Clyde do tempo atual”.

A track “Agenda” tem consigo um flow/refrão chiclete e nada mais. Logo na terceira música do projeto tudo já soa automatizado demais, a composição é repetida à exaustão, a produção é extremamente superficial e apresenta um padrão previsível sem nenhum tipo de carisma, graves batem, bateria demarca tempo, o sample de sopro se repete e mais um trap medíocre se encerra. Na verdade, há que se destacar, porém negativamente, umas das piores rimas de todo o álbum:

É que minha agenda já tá cheia, bebê, wow

Depois nóis vai marcar pra fuder no camarim do show

Vou comprar umas grife’ da cara pro’cê, fechou? (Fechou?)

Nem precisa me agradecer, ‘cê me paga com blow’ (job)

Desse ponto em diante, as coisas melhoram um pouco, principalmente no quesito produção. ‘Purifica’ tem uma linha com sintetizador bastante interessante feita por Pedro Lotto, até na construção sonora o nível é elevado com vozes de apoio bem postadas para incrementar os versos. No entanto, do ponto de vista da escrita, o show de horrores continua, comprovando mais uma vez que trappers e coerência temática são conceitos rivais, seria um desafio e tanto para o artista (ou qualquer ouvinte que queira se aventurar) dizer o que exatamente um sexo oral tem a ver com purificação da alma, aprendizado das ruas e amizades verdadeiras como demonstra mais um refrão repetitivo e sem sentido algum: 

Quando ela me chupa, purifica a alma

Não quero mais parar, ela fode demais

Aprendi nas ruas que eu não posso errar

Sem desanimar, meus manos são reais

A próxima track, ‘Como Deus é Bom’, apresenta o único feat do álbum, Nog (Costa Gold), e inclusive é a música mais interessante da tracklist. Kawe performa melhor do que no restante das faixas apenas por manter um raciocínio mínimo entre suas linhas, além disso, algumas variações métricas são bem feitas e distribuídas. O convidado também não fica atrás, o duo de Pedrella faz o básico e replica a temática motivacional da música com uma cadência interessante. Pela sonoridade, o beat mais lento de André Nine é bem ambientado e acompanha um piano mais ao fundo que deixa a produção, apesar de simples, bastante agradável.

‘Conversível’ vem com a temática de vitória e superação, a faixa, que apesar de bastante parecida com o restante do que já vimos, possui uma sonoridade agradável e  apresenta apenas uma problemática: em meio a um refrão com as rimas como  “Eu cansei de carro com teto, eu vou de conversível, meu filho vai nascer patrão, padrão de vida incrível” interpola colagens do lendário discurso de Martin Luther King, mundialmente reconhecido pelo mote “I have a dream”, o que, se se conhecer minimamente o teor desta importante fala do ativista, já é o suficiente para instaurar certo mal gosto na escolha da track. 

A tracklist é finalizada com a “parte dois” da faixa que viralizou no ano passado. ‘MDS 2’, assim como uma sequência sem substância de um filme que tenta tirar até a última gota de lucro de sua franquia, explora o sucesso de sua antecessora usando pontes para os refrãos com os mesmo versos e flows que explodiram na rede social de coreografias. O restante da faixa que era pra ser inédito é, na verdade, tão repetitivo quanto o próprio álbum e esmiuçar isso novamente aqui seria correr o risco de tornar a review parecida com este. 

A proposta comercial de 7 Dígitos é agressiva e óbvia: apresentar mais músicas para performar bem nos serviços de streaming e quem sabe viralizar, novamente, dentro do Tik Tok, e isso está longe de ser um problema, músicas curtas de propósitos estritamente comerciais não são necessariamente o mesmo que músicas ruins. Porém, esse alvo fixo coloca limitações em torno do trabalho, fazendo com que o este se limite a tentativas de refrãos chicletes, produções sem muito brilho, temáticas repetitivas, quase não sobrando tempo algum para algo além de um valor comercial mínimo que o álbum apresenta. 

Melhores faixas: Como Deus é Bom

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