É impossível não perceber como as ruas ditam o caminho que a moda vai seguir muito mais do que qualquer passarela. Enquanto estas últimas funcionam como “legitimadoras” de ideias (muitas vezes de formas desonestas), é na primeira que está o turbilhão de ideias que vai mostrar o caminho que as pessoas irão seguir. Mas o que acontece quando quem faz a moda simplesmente não liga pro que as ruas dizem? O recente “caso Lacoste” é obviamente um dos resultados.
Entre os tantos rappers que cantam sobre moda, lifestyle e a vida luxuosa das roupas de marca, MD Chefe é uma dos principais nomes do Rio de Janeiro. Seu primeiro grande trabalho, ATG Tape chega nas ruas justamente para solidificar o que o MC já conquistou com seus diversos singles e hits. O mais conhecido é justamente ‘Rei Lacoste’, que hoje já ultrapassa 6 milhões de visualizações no YouTube. Com produção de DR3W, o instrumental mistura loops de instrumentos de corda com um 808 potente e hi-hats ocasionais, dando à track o ar de classe que o “trap de luxo” de MD transmite. A sua voz grave, combinada com o flow lento e o delivery sem energia mas carregado de sotaque carioca faz com que o carisma do MC compense qualquer falta de brilhantismo (ou até mesmo diferencial de outros nomes da cena) na sua caneta. O feat de DomLaike, mesmo que não elevando de fato a qualidade geral da faixa, coloca ela como uma representante extremamente pontual desse mundo luxuoso em que eles vivem.
E esse mundo, apesar de já ser cantado por tantos outros além dele (às vezes até melhor ou com mais profundidade), combina com o seu som e o seu estilo. A narrativa do “preto rico” ou “favelado chique” é a abordagem que ancora a sonoridade de MD na realidade em que ele canta. Mas assim como uma âncora te coloca em contato direto com o chão, ela também te impede de seguir adiante.
‘Artigo de Grife’ é a música que dá nome ao projeto e que também entrega logo de cara o que você vai receber dentro dele: o refrão viciante, principalmente pelo delivery do artista, se intercala com um verso focado 100% na ostentação, fórmula seguida ao longo da tape. Na produção, FP, responsável pela maioria das músicas, trabalha loops de metais lentos pra criar um trap mais suave, mas sem abrir mão do peso do grave e da velocidade na percussão. O produtor também é responsável pelo ótimo beat de ‘Tiffany’, clássico trap pesadão com um piano que trabalha junto da bateria pra criar um instrumental impossível de passar despercebido. Na caneta, a música mostra uma das piores armadilhas que o rapper enfrenta como letrista: o quanto suas rimas se apoiam apenas em nomes de marcas.
‘Fragrância Remix’, com participação de L7nnon e PL Quest, mostra como essas amarras prejudicam o que pode ser oferecido. Nela, as rimas lotadas de referências a marcas de perfume faz o flow cansar rápido demais, até mesmo no refrão. Apesar de que sim, é possível lançar boas rimas com assuntos tão específicos (a boa “Paco tá no bolso/ e o Rabanne do vidro dourado” de L7 é prova), a falta de variedade de assunto – ou até criatividade na hora de falar sobre – prejudica a música como um todo. Incluindo o bom beat, focado em hi-hats e sample de instrumentos clássicos, feito por Nagalli, provavelmente uma das figuras mais consistentes do trap nacional.
Por sorte, uma das melhores músicas do disco consegue se sobressair mesmo com alguns desses defeitos. Com um instrumental que contrasta 808s pesados e com uma melodia suave (que muitas vezes parece copiar a sonoridade de um xilofone) pelas mãos de CHF, a ‘Montblanc’ é uma música para falar sobre portar óculos de luxo. A presença de MC Cabelinho, porém, traz uma energia – ausente na levada de MD Chefe – que dá vida à track. Aliás, é em momentos como esses, em que é colocado lado a lado com outros artistas, que a abordagem repetitiva do carioca fica mais aparente. Na divertidíssima ‘HB20 2’, faixa com instrumental explosivo e frenético produzido por FP, o anfitrião recebe C’97, Rare G e Flacko Joshy para versos sobre luxo e dinheiro, mas que são tão curtos e animados que antes de soarem repetitivos já acabaram, deixando apenas as partes positivas.
Apesar da voz e dos refrãos feitos por MD Chefe serem alguns dos principais elementos que mais chamam atenção na sua música, o seu flow, principalmente quando utiliza o triplet, forma ritmada de rimar baseada em uma sequência de cadências focadas em três sílabas tônicas, desenvolvida por grupos como Bone Thugs n’ Harmony e Three 6 Mafia, e que estourou nas rádios com grupos como Migos, faz com que a energia que falta em sua forma de falar apareça através da velocidade que o MC coloca nas suas linhas. Em ‘A Verdade É Essa’ e ‘Tendência’, produzidas também por FP – o que deixa elas bem parecidas, já que é possível notar a similaridade de elementos que fazem parte da bagagem do produtor – o MC faz bom uso dos triplets, aproveitando também pra mostrar os melhores momentos da sua lírica. Na primeira faixa mencionada, a capacidade de saber se divertir com braggadocios garante momentos bem humorados (Calma, cumpadi, meu bagulho é whisky / Pera, lembrei que eu tenho outra mania / É que eu uso Lacoste o dia todo / Também uso Lacoste todo dia); já na segunda, mesmo que por um breve momento, é possível ver o artista se abrir e contar mais sobre sua vida pessoal:
Cês ainda pegaram nós na fase boa
Lembra que o estúdio era do lado da boca
Tá clima de opera, não dá pra gravar
Mas assim que apaziguar, nós vai lá e grava outra
Mesmo assim, momentos como esse, que lidam com emoções mais reais são raros. ATG Tape não apresenta nada do que já não se sabia sobre MD: o seu amor por marcas e pela vida luxuosa está presente em cada uma das músicas. A duração do projeto (pouco mais de 20 minutos) faz com que tudo passe rápido demais, e, mesmo com qualidades que se destacam, o trabalho se mostra repetitivo em algumas faixas: enquanto esbanja carisma e personalidade, graças ao seu flow suave, bom humor e voz marcante, ele esquece de mostrar variedade, seja sonora ou de escrita.
Por mais que muito do que ele faça esteja dentro de uma fórmula esperada para o trap, os diferenciais que MD Chefe trouxe para a cena carioca chamaram a atenção por ser uma novidade, mas assim como o som dos seus contemporâneos, pode se tornar cansativo rápido quando peca pelo excesso. O estilo que o rapper carioca vestiu a camisa (literalmente) para alcançar o mainstream traz também o peso dela: continuar se apegando a isso, ficando nesse espaço confortável de fazer música, ou buscar novas formas criativas de apresentar a vida de luxo que ela retrata nas suas rimas.
Melhores faixas: Rei Lacoste, Montblanc, Tendência e HB20 2