Review: DJ Caíque – Força Motriz

Ao final, mesmo perdendo parte do seu impacto inicial, o disco merece levar o título de trabalho sólido.

A longa e conhecida jornada de Dj Caíque (que conta com um catálogo recheado de parcerias de sucesso com artistas como Projota, Rashid, Emicida e Rodrigo Ogi), ganhou um novo capítulo. Força Motriz, seu mais novo álbum, chega com uma proposta que segue a mesma linha do seu antecessor, Coligações Expressivas 5, porém, trazendo apenas mulheres e pessoas trans não-bináries para compor o elenco de artistas. O projeto visa dar força e visibilidade aos convidados, além de colaborar diretamente com a inclusão desse grupo dentro do rap. Contando com nomes já conhecidos e novos talentos, o disco foi pouco comentado pela grande mídia e pouco explorado nas redes sociais, o que diz muito sobre como essa temática ainda é tratada pelo público do rap. Mas, antes de nos aprofundarmos nesse assunto, vamos passear pelo conteúdo musical e pelo desempenho das artistas envolvidas para entender melhor a ideia.

O álbum contém 12 faixas e teve seu primeiro aperitivo servido há meses antes de seu lançamento, ‘Talismã’, que conta com a caneta e os vocais de Souto MC, é um ótimo rap; a MC enfileira barras em formato storytelling, numa estrutura sem refrão que te prende do primeiro ao último segundo, sempre abusando das rimas internas e de muita técnica. A música funciona muito bem sozinha, mas, dentro do álbum, eleva-se ainda mais. Já a produção traz um beat bem reflexivo, que estimula o ouvinte a prestar atenção nas linhas, uma ótima escolha do Caíque para essa track.

Como o single acabou ficando muito distante do projeto, o ponto inicial ficou mesmo para ‘Fazendo História’. Em um tom motivacional, Indy Naíse e Yasmin Olí, dissertam sobre se libertar de olhares que as implicam dúvidas e descrenças, fazendo da música um passeio sobre um ego que sempre esteve sob julgamento e que finalmente encontrou sua liberdade. “Cabulosa” é o descarrego do álbum, BIA DOXUM não poupa vocabulário para fazer o ouvinte entender um pouco da sua trajetória e das barreiras machistas que toda mulher precisa encarar para alcançar um lugar que é seu por direito. Sem oscilar, a cantora e compositora transpira hip-hop em um beat que potencializa seu discurso e evita interferir de maneira desconexa. Início muito promissor, o que cativa logo de cara é a experiência com a qual as MCs dominam as batidas, deixando a audição o mais agradável possível.

No quesito performance vocal, SoulRa em ‘Mina do Som’, e Serena Ramos em ‘Libertação’, proporcionam a melhor experiência melódica do projeto. Apesar de seus títulos proporem assuntos diferentes, na prática os temas discorrem sobre os mesmos sentimentos, mas de maneiras distintas. Uma aborda a liberdade de forma romântica, a outra propõe observar a liberdade de situações mais simples como: “hoje eu quero andar por aí, tão livre quanto a brisa, tão quente como o verão e tão alucinantemente forte como um furacão, então deixa eu jogar meu cabelo black ”. As batidas são completamente opostas, SoulRa rima sob graves dançantes que colaboram com a temática, enquanto Serena desfila sua bela voz em um piano com baterias suaves.

Fugindo um pouco da sonoridade e buscando um ar mais denso, ‘Feeling Good na Voz de Nina’ é uma visita ao lado mais visceral de WinniT. Dando fortes socos no preconceito, em um esquema cercado de trocadilhos e wordplays, o MC mistura tudo em uma cadência de flow que parece ter carregado uma boa influência do Sabotage. A produção também muda a chavinha e providencia um ótimo terreno com ares mais cinzentos, deixando WinniT bem confortável para matar a faixa de ponta a ponta.

Voltando ao clima apontado no início, ‘Agbará’ sofre com a falta de dinâmica entre o DJ e a MC Dory de Oliveira. A track começa com um verso cantado que faz referência à ‘Ela Partiu’, de Tim Maia, e acaba com um verso completamente deslocado da emoção que a melodia propõe. Na performance, a rapper não segue nem as cordas e nem o andamento suave que a produção propôs, faltando senso comum ao avaliar a estrutura usada na música, talvez uma mudança no beat minimizasse a incoerência musical nítida da track.

O mesmo não ocorre em ‘Não brinca’, onde a rapper Boombeat desliza na bateria e no saxofone utilizado, compreendendo exatamente o que a composição pede. Com ótimas sacadas, que vão de punchlines mais ácidas e até mesmo uma pitada de sarcasmo, a letra consiste em debochar do preconceito/homofobia, sem perder a firmeza que o assunto necessita.

Mas quando você tá sozinho me nota e provoca – “gostosa”

Maravilhosa, me pede ajoelhado, fala que eu sou uma delícia, mesmo sem ter me provado,

Vai ficar na mão, otário, e depois dessa eles vão ouvir D2,

Sonhando em ouvir, boombeat D4

A partir daí, o disco vai perdendo seu impacto e acaba dando lugar à monotonia e o que poderia ter sido muito bom acaba estagnado, sustentando-se apenas por seu tema, a sequência de faixas final é extremamente engessada. Em ‘A Noite não tem Fim’, de Nathy MC, fica evidente a falta de variações de flow e beat, principalmente quando comparada às faixas anteriores. Na composição, até mesmo o refrão se assemelha aos versos, reforçando a escassez artística. Nanda Effer tem exatamente o mesmo desempenho em ‘Inimigos Íntimos’, a música não possui o carisma necessário para prender a atenção do ouvinte, nem mesmo o instrumental consegue ter o mesmo encanto das primeiras músicas.

Correndo o risco de soar repetitivo, ‘Linha de Frente’ também sofre das mesmas pendências. Aqui ainda há um problema grave, a utilização equivocada da voz no refrão, fazendo a MC Dani Zenker soar desafinada. Na verdade, o que falta nessa sequência talvez seja abordar o tópico de perspectivas e ângulos diferentes, e é aí que deveria entrar a experiência do produtor, direcionando e potencializando a performance das MCs que tiveram uma atuação ofuscada dentro do disco.

Ao final, Força Motriz, mesmo perdendo parte do seu impacto inicial, merece levar o título de trabalho sólido. Além de colocar em composições tópicos tão importantes, o projeto apresenta uma gama de artistas competentes e capazes de desenvolverem bons trabalhos futuros, mesmo com a pouca variedade de beats e a carência na dinâmica entre DJ Caíque e algumas artistas. Trata-se de um álbum bem próximo do ideal, mas não muito longe do cansativo. Além disso, é muito importante pontuar que os pontos alvos de críticas também se devem a toda defasagem que as artistas fora do padrão atual do rapgame sofrem dia após dia em busca de retorno. Evoluir é necessário, porém, não há meritocracia quando se compara situações como estas, que só agora estão recebendo atenção, com artistas que já nascem favorecidos por gênero e cor. De qualquer forma, o disco é coeso e vale o replay; que toda essa empreitada abra espaço para novos nomes surgirem e florescerem dentro desse cenário que ainda segue muito atrasado.

Melhores faixas: Cabulosa, Feeling Good na Voz de Nina, Talismã e Não Brinca.

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