RT Mallone levanta questões sobre a vida e o rap em seu álbum KIPEMBE

Como prosseguir em meio a uma cena que não acompanha o amadurecimento dos que realmente se comprometem?

Não é de hoje que a caneta de RT Mallone impressiona pelo seu equilíbrio entre o esmero e a honestidade. Mesmo antes de ‘Roho Tahir’, o rapper de Juiz de Fora já conseguia transpor os anseios e percalços de um artista que precisa correr o dobro para obter a própria independência. À medida que mais trabalhos saíam, sua musicalidade também foi expandindo, e críticas acerca da construção de certos refrãos ou de sua performance cantada perderam o espaço que já tiveram. Não seria exagero dizer que, em ‘KIPEMBE’, temos o seu trabalho mais completo até então, mas essa maturidade não é a mesma que você encontra nas descrições de um release padrão. O que o diferencia dos demais é o desenvolvimento de uma pergunta que provavelmente todo MC já fez: Como (e por quê) prosseguir em meio a uma cena que não acompanha o amadurecimento dos que realmente se comprometem?

Isso já fica evidente logo no início de ‘Fod*-se O Rap’, que entre ótimas multissilábicas e esquemas de rima, consegue dar uma pertinente constatação de como o rap continua reproduzindo, quando não agravando, os mesmos privilégios e exclusões que ele tanto diz se opôr. A produção é bem simples, apenas mantendo as baterias e os reverbs bem destacados para acompanharem a rispidez e as variações de flow do anfitrião. Essa estratégia também se repete em outras faixas mais centradas na rima, mas a coesão entre as inúmeras críticas levantadas em seus 3 minutos de duração impede que esse minimalismo canse. Juntamente com o melancólico jazz em ‘Papéis Coloridos’, a faixa inicial estabelece bem a sobriedade do projeto.

A verdade é que o hip-hop é uma preta num trem lotado 

O rap ficou rico e ainda é seguido no mercado 

Então não abraça, que esses papo de hype passa 

E as paty que dá mole hoje, é as mesma que ontem fez piada 

Eu quero a minha parte em dólar, eu vim que nem eu fui pra escola: 

Pelas notas e pra comer, porque amor eu trago de casa. 

Isso também avança nas músicas com maior influência do R&B, e ‘Moonlight’ é o melhor exemplo disso, principalmente por descrever um relacionamento afetivo, enquanto forma de resistência. (Preto sob azul da lua é índigo/ Nosso amor é lindo (skrr), íntimo/ Me enxergo em você, eu me enxergo em você). A track ainda conta com a melhor performance de RT fora das barras e mais barras que ele sempre cospe, em especial pelas mudanças de tom que o mesmo faz durante as repetições. Onnika não desenvolve muito tema proposto, mas mantém o alto nível até o retorno do rapper graças a sua habilidade de subir e descer notas enquanto também varia a velocidade das próprias métricas.

Ainda sobre os feats do projeto, é válido comentar sobre a forma que eles se configuram. Considerando o calibre de alguns dos nomes que aparecem aqui, seria muito fácil tentar estabelecer uma dinâmica competitiva para angariar mais ouvintes mensais, mas aqui isso

não acontece. Alguns simplesmente entregam pontes entre os versos de RT, outros até rimam mais do que o convidado, enfim; o que fica nítido é como todos parecem confortáveis com aquilo que decidem apresentar. Isso não os isenta de excessos, e o prolongamento do verso de Sant em ‘C.A.R.D.’ e a sequência de monorrimas carregadas no autotune de Chris MC em ‘Atro (Uma Noite Em Miami)’ se enquadram aí, mas o saldo final é frequentemente positivo.

No caso de ‘1 Por Amor’, isso se dá pelas expressivas modulações de voz que são feitas em meio aos sintetizadores de house, junto com o bom refrão de Negus e a saída repleta de braggadocios e parônimas de Muxima MC, que também atuou na produção e na mixagem do disco. ‘Monalisa’, por outro lado, mergulha num vazio existencial até o final do seu refrão, sendo depois sucedido pelo “boemia contemplativa” de Victor Xamã até o final do som. O verso do convidado também se aproveita de pequenas pausas e rimas imperfeitas para que a construção seja um pouco mais fluida, mas fica o sentimento de que foi posto o feat certo para a faixa errada, dado o teor confessional dos versos do anfitrião. “Você é uma inquilina/No meu coração devendo aluguel” é uma ótima punchline, mas não é uma boa conclusão para uma faixa que minutos antes dizia:

Se eles querem meu sangue é melhor cavar 

Porque eu tenho me sentido tão vazio 

Nesse tom macio, de azul ciano 

Tô alucinando ou esse inferno é frio (memo)? 

Tipo um sonho que eu nunca acordo 

E a corda no pescoço já é adereço 

Se pá eu mereço, tá geral de acordo 

Aqui até o mais ladrão vai pagar o preço. 

Passado esse ponto, o álbum começa a seguir um tom mais contemplativo. Tanto ‘24H‘ como ‘Queen & Slim’ seguem a ideia de apreciar e aproveitar os momentos não pautados na lógica desumanizante do trabalho, seja através do bom e velho ócio criativo ou numa simples relação de companheirismo. A que mais se destaca é a primeira, pelas inúmeras dobras cantadas que acompanham os versos despretensiosos do rapper e de Bivolt. ‘Queen & Slim’ se beneficia do singelo piano acompanhado pelo sax no refrão e também de uma caneta mais focada, com algumas linhas realmente tocantes no meio (E mato qualquer um que te machucar/ Eu já quase me matei por isso), mas acaba evidenciando as limitações de RT no canto, que já apareciam aqui e ali.

E partindo para o fechamento do disco, temos ‘Fim do Arco-Íris’ e ‘Sonhos Imperiais’. Sem grandes variações de flow ou rimas super elaboradas, ambas as faixas dão continuidade ao questionamento que movia o trabalho, e apesar de não o responderem, elas narram a necessidade de se abrir emocionalmente para que se possa lidar com todas as contradições do meio, “sem perder o brilho dos olhos”. Até os sopros e acordes assumem um papel secundário em meio ao que é rimado al, com exceção dos singelos áudios familiares inseridos nos dois sons. Seria um final ideal para o disco, mas a faixa que realmente o encerra é ‘Astro (Uma Noite Em Miami), que pelo seu tom de superação acaba funcionando mais como um “pós-créditos” do que como um ponto final. De toda forma, o trabalho se encerra bem.

Numa análise fria (e superficial), ‘Kipembe’ é um álbum que não traz muitas respostas para as perguntas que levanta. Mas ele não tenta fazer isso. O grande mérito de RT Mallone é desenvolvê-las de forma ampla e aprofundada, sem deixar de expor o quanto elas afetam aqueles que ainda sonham com uma chance de ascender, incluindo ele próprio. Num cenário que permanece normatizando comportamentos que vão contra o próprio movimento, trabalhos assim dão perspectivas de como seguir em frente..

Melhores Faixas: Fod*se o Rap, Monalisa e Fim do Arco-Íris

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