Kendrick Lamar trabalha seus traumas e falhas em Mr. Morale & The Big Steppers

É difícil calcular a quantidade de acontecimentos recentes que mudaram o mundo para sempre, mas o disco é um produto direto dessa temporalidade e de como ela afetou o artista: é uma sessão de terapia.

1855 dias. Essa é a exata contagem de tempo em que Kendrick Lamar demorou para retornar aos holofotes com um novo álbum. Desde o aclamado DAMN. (2017), foram cinco anos de hiato, de reclusão e de poucos trabalhos lançados. Para um MC tido como o salvador do rap, era de se esperar que sua ausência deixaria um vácuo na cena, e que seu retorno seria esperado tal qual o de uma entidade religiosa. O que ninguém esperava é que, durante esses 1855 dias, o mundo viraria de cabeça para baixo, e o peso desse tempo seria o combustível para que Lamar produzisse, nas sombras, umas das obras mais intensas que o hip-hop já testemunhou.

Quando DAMN saiu, Donald Trump era o novo presidente dos EUA, COVID-19 era um termo desconhecido e George Floyd era só um cara que trabalhava como segurança. É difícil calcular a quantidade de acontecimentos recentes que mudaram o mundo para sempre, mas é certo que Mr. Morale & The Big Steppers é um produto direto dessa temporalidade e de como ela afetou o artista: o disco é uma sessão de terapia.

Como ser humano, Kendrick também sentiu o peso do tempo nas costas. Tornou-se pai duas vezes, fundou sua própria empresa, anunciou sua saída do selo em que esteve durante toda a carreira, viveu um longo período de ‘quarentena’ dos olhos públicos e teve que lidar com o bloqueio criativo por dois anos. Como celebridade, ele testemunhou trágicas mortes de colegas como Nipsey Hussle e Kobe Bryant, viu a opinião pública se voltar contra nomes como Kanye West e Will Smith e a ‘cultura do cancelamento’ engolir diversas carreiras. Além disso, como homem preto, tido como a voz de uma geração, viu as ruas arderem em fogo e chumbo após George Floyd dar seu último suspiro.

Tais acontecimentos são o suficiente para que um homem coloque toda sua concepção de ‘vida’ em perspectiva, e quando se é alguém com o poder de escrita de Kendrick Lamar, a perspectiva torna-se poesia. Logo, a ideia central do álbum é a humanização do artista, e para isso, ele atravessa temas como legado, família, relacionamentos, passado, traumas e vícios, construindo o retrato psicológico de Lamar: uma salada de influências, gêneros e experimentações, que fazem a obra ser não apenas uma jornada emocional, mas uma montanha-russa de sensações tão caótica quanto a mente do rapper.

Pt.1: The Big Steppers

O disco 1 pode ser interpretado como o ‘lado tóxico’ do álbum, onde Kendrick deixa seus demônios bem visíveis para quem quiser ver antes de aprender como lidar com eles. Em United In Grief, uma introdução perfeita, K-dot rima explicitamente sobre como ele se acostumou a lidar com seu sofrimento através de seus piores vícios, como o consumismo e a infidelidade no casamento. Quando N95 começa, Lamar dá boas-vindas ao mundo novo pós-pandêmico, e sob um trap poderoso com a aura de Baby Keem, ele rima, canta, muda de voz e faz até um mumble rapping para desafiar a superficialidade das mídias e dar um choque de realidade sobre o mundo atual. Na passagem para a faixa 3, o que se ouve é a voz de Kodak Black apresentando o novo alter ego de Kendrick, Oklama, o guia espiritual Eckhart Tolle e introduzindo o nome da 1° parte do álbum duplo: The Big Steppers.

Com Worldwide Steppers, ele retoma a vibe da introdução, como se o rapper estivesse deitado no divã fazendo desabafos e auto-reflexões. Ambas possuem uma produção minimalista, com apenas loopings de percussão, piano ou vozes, para que seus versos não dividam a atenção com nada. Aqui, ele mal chega a rimar, e a faixa não possui uma estrutura de canção, como se ele estivesse recitando um poema. Ele começa dando uma ideia sobre sua dinâmica em casa nos últimos anos, fala sobre seus filhos, sua saúde e seu bloqueio de escrita. Porém, a chave vira quando ele admite ser dependente sexual e narra duas histórias sobre relações que teve com mulheres brancas. Aí, Kendrick começa a brincar com a complexidade moral que ele explora ao longo do álbum, e nesse caso, o desejo de vitória – ou vingança ancestral – que ele sente ao conquistar a mulher branca, ainda que ‘mate a confiança’ delas e prejudique seu próprio relacionamento.

Este não é o Kendrick de DAMN, ele é mais cru, cansado e transparente do que jamais foi, e essas três canções, ainda que excelentes, provam que não existem regras aqui. Die Hard é a prova disso: após dois desabafos recitados e um trap, K-dot chega com uma baladinha pop leve com toques de afrobeat que parece ter saído direto das sessões do álbum do Pantera Negra. É uma ouvida gostosa, com boas participações dos cantores Blxst e Amanda Reifer e uma açucarada após uma sequência amarga de digerir, talvez por isso seja a favorita de muitos. A faixa é otimista, com Lamar dizendo que seu passado não irá impedi-lo do seu melhor e se mantém coerente com o tema, mas em um álbum que tem tanto a dizer, ela soa mais rasa e acrescenta pouco.

Ela também mostra que The Big Steppers tem um padrão de sequência: entre as faixas que ele usa como descarrego emocional, as mais difíceis de absorver, ele coloca algumas mais ‘amigáveis’ aos ouvidos. Além de Die Hard, faixas como Rich Spirit (7) e Purple Hearts (9) cumprem bem essa função, posicionadas estrategicamente entre Father Time (5) e We Cry Together (8). Essas mudanças de direção fazem com que o álbum seja bem variado, e às vezes um tanto inconsistente, o que se deve também a sua longa lista de produtores, que vai das novas influências de Baby Keem à experiência de The Alchemist e Pharell. Porém, a cabeça por trás de tudo segue sendo Sounwave, que prova mais uma vez que ele e K-dot são como Bebeto e Romário: não perdem jogando juntos.

Em Father Time, a voz que abre é a de Whitney Alford, sua esposa e namorada de infância, que diz que ele ‘realmente precisa de terapia’. Como uma reação normal de muitas pessoas, especialmente homens, Kendrick prontamente nega, e daí a faixa começa com seus temas ficando claros: problemas paternos e masculinidade. É uma canção linda, com um beat de piano que dá o tom emotivo enquanto Kendrick constrói a visão de como seu pai o criou. Lamar, como poucos garotos que vieram da mesma realidade, teve o privilégio de ter um pai presente, mas ainda que ele estivesse ali, seu pai o ensinou a ser frio, competitivo e egocêntrico, dizendo que ele nunca deveria demonstrar sentimentos. Aqui, a complexidade moral aparece de novo, pois por mais tóxico que esse pensamento seja, ele expõe a missão mais dura de ser pai de um menino preto: ensinar a ele que o mundo será cruel durante sua vida.

Essa ideia faz a ponte perfeita para o primeiro interlúdio do álbum. Em Rich, novamente ouvimos Kodak Black, que dessa vez veio para rimar. O convidado é uma das figuras mais controversas do hip-hop gringo, que recentemente esteve preso por porte ilegal de armas – saindo com o perdão presidencial de Donald Trump -, além de acumular acusações de roubo e violência sexual. Para o público que o conhece como rapper ou criminoso, Kodak expõe seu lado humano. Daí, Rich Spirit entra como uma das faixas amigáveis, um rap estiloso e irreverente na vibe do Vince Staples mas que pouco acrescenta perto das outras.

Porém, poucas faixas incorporam tão bem o ‘lado tóxico’ do disco quanto We Cry Together, literalmente uma DR de um relacionamento abusivo entre Kendrick e a atriz Taylour Page, que atuam como um casal que passa quase 6 minutos em uma troca de ofensas. Em um dos melhores beats do álbum, The Alchemist sampleia June, da Florence & The Machine, para criar o ambiente ideal para a performance, com um Kendrick mais teatral e divertido do que no resto do álbum, mostrando inclusive como Eminem é uma grande influência em seu trabalho como MC. Mesmo assim, quem rouba a cena é Taylour Page, com uma performance – da atuação ao flow – tão absurda que faz esquecer que ela sequer é rapper (!). É uma faixa em que a moralidade vai de ralo a cada vez que um rebate o outro, mostrando não só a versatilidade de Kendrick, como do rap como arte, na sua forma mais criativa e apaixonante.

A 1° parte do álbum chega ao fim com a romântica Purple Hearts, em que o R&B toma conta – no pique da SZA -, com uma performance apagada de Lamar, uma excelente da cantora Summer Walker – uma expoente do gênero – e o ápice do final: a participação de Ghostface Killa. A letra, que cita amor e drogas como vícios, soa engraçada após a reconciliação do casal na faixa anterior, e tem o Wu-Tang como um pastor pregando em uma igreja lotada, encerrando de forma catártica um álbum – ou meio álbum – excelente.

2 – Mr. Morales

Se o disco 1 era sobre deixar os demônios falarem como forma de identificá-los, agora vem a parte mais difícil: aprender como conviver com eles. Count Me Out é uma peça importante no contexto geral, mas longe de ser um momento marcante. Na faixa, Kendrick reflete sobre seu ego e seus erros, dando o primeiro passo para a superação. A canção tem influência gospel no melhor estilo Kanye, e depois passa para um beat de trap que mostra quão influente Baby Keem tem se tornado em sua sonoridade. Apesar de soar bem, a faixa mostra um Lamar menos afiado e perde seu brilho com facilidade. Daí, temos Crown, uma canção sobre o peso do poder que lhe foi conferido, e sobre como o mesmo peso é devastador quando depositado sobre uma única pessoa que nunca vai poder corresponder às expectativas que fazem sobre ela. Porém, é basicamente uma canção inteira apoiada em uma base de piano em que Lamar canta com sua ‘voz de alien’ e que se arrasta por mais de quatro minutos, fazendo com que, no final, ela soe cansativa.

Diferente do disco 1, Mr. Morale possui um início menos impactante, que talvez seja o ponto mais baixo da obra. Em Silent Hill, Kodak Black retorna em uma faixa que abraça a estética do trap. Aqui, K-Dot rima de forma econômica, revezando seu mumble rapping com partes cantadas para fazer a ponte para Black, que dentro de suas limitações como MC, faz um bom trabalho. Apesar de não contribuir tanto para a narrativa, provavelmente é uma das faixas que melhor funciona como canção solta. Outro ponto é que nela fica visível que Kendrick dá espaço para a humanização de Kodak após as polêmicas, e em seu verso, ele cita um pouco do peso de sua responsabilidade como pai jovem, algo especialmente difícil pelo fato dele ter crescido sem um.

Daí, Kodak puxa o fio condutor que vai levar a Savior (Interlude). Como uma introdução a faixa seguinte, Eckhart Tolle, o guia espiritual alemão citado por Kodak em Worldwide Steppers, aparece. Segundo ele, existe uma tendência humana de construir todo o senso de identidade própria nas coisas ruins que nos aconteceram, como se nossa existência fosse limitada aos traumas. Essa ideia diz muito sobre o álbum e os temas que Kendrick mergulha nessa segunda parte. Contudo, a faixa é de Baby Keem, que aqui ganha espaço para rimar sobre sua trajetória e como superou as adversidades a ponto de se tornar uma estrela ao lado de seu primo.

Tudo isso prepara o terreno para um dos carros-chefes. A essa altura, muitos ouvintes perceberam que esse Kendrick não é o mesmo de GKMC ou de TPAB, quando foi considerado a voz de sua geração. Contudo, se tem uma faixa que todos esperavam de K-Dot em 2022, essa faixa é Savior. Aqui ele rima como um rei, metralhando alguns de seus melhores versos em cima de um beat monstruoso, tudo isso dando o papo reto: ele, assim como outros ícones, não é um salvador. Liricamente esse não é só um momento definitivo do álbum, mas de sua carreira, uma vez que ele se dirige diretamente ao público para, pela primeira vez, recusar o rótulo de porta-voz e a pressão que isso exerce sobre um rapper que, aos 34, tem outras prioridades. Kendrick dispara sobre a cultura do cancelamento, refletindo sobre como os rappers tem medo de serem crucificados por suas letras e como isso tem um peso diferente de acordo com o ‘condenado’. Da mesma forma, ele rima sobre a COVID e o negacionismo, e critica a hipocrisia dos ‘aliados’ e das corporações em relação ao Black Lives Matter: ‘um protesto para você, 365 para mim’, ‘capitalistas fingindo compaixão me ofendem’. A música em que ele renega o título de profeta, é onde ele mais se aproxima do Kendrick que conquistou esse título.

Em Auntie Diaries, Lamar começa: ‘minha tia é um homem agora’, e o impacto disso aponta para um rumo ainda mais pessoal. Kendrick conta com maestria uma história de sua infância, mas longe dos temas de GKMC, aqui ele narra a vida de seu tio e de sua prima, ambos trans, e como sua versão criança – e o mundo – se comportavam sobre isso. Essa é uma das faixas em que a produção usa apenas efeitos sonoros para criar a atmosfera para o desenrolar da história. Assim como muitas outras do álbum, a faixa não é fácil de ouvir, mas é impossível não ficar envolvido com a forma em que o MC constrói os personagens e o universo hostil que os cerca. A faixa é provocativa que segue a ideia de brincar com a moralidade, e isso fica claro quando K-Dot repete o termo pejorativo ‘faggot’ para ilustrar a forma como as pessoas falavam de sua prima. Sobre isso, ele dispara: ‘Faggot, nós podemos dizer juntos, mas só quando você deixar uma garota branca dizer nigga’.

Com essa ponte, Mr. Morale vem pesada, com Kendrick gritando como se estivesse fugindo de algo ou acordando de um pesadelo. A produção da faixa é sombria, eletrônica e hipnótica, assinada por Pharell Williams, e casa perfeitamente com o tom de agressividade e urgência que o MC põe em seus versos. A faixa-título não é apenas uma porrada sonora e lírica, como resume a ideia central do álbum: o trauma – em especial, o trauma negro -, e a forma como a sociedade rapidamente ‘cancela’ as vítimas desse tipo de experiência. Serve também como introdução para a canção que é o ápice dessa jornada.

Se Mr. Morale & The Big Steppers é uma montanha-russa, com seus altos e baixos, a faixa Mother I Sober são aqueles poucos segundos entre a subida do carrinho na parte mais alta e a descida. A canção é uma balada de quase 7 minutos que utiliza praticamente apenas um piano belo e sombrio enquanto Kendrick rima. Com a bola levantada na faixa anterior, Lamar mergulha em temas já abordados sob uma perspectiva mais pessoal, e aqui, eles tem o sexo como base. Como grande escritor, ele narra, verso a verso, como os ciclos de abuso fizeram parte de sua família, e como, consequentemente, eles fazem parte da história da maioria das famílias pretas e periféricas. Entre os versos, a voz bela e espiritual de Beth Gibbons, da banda Portishead, preenche o vazio com um verso melancólico que dá o toque necessário.

Então, chega-se ao ponto x do álbum. O trauma não é só uma questão individual, e sim um problema geracional, especialmente na vida de Lamar. No álbum, ele frequentemente usa experiências individuais para ilustrar como elas são comuns na comunidade preta, e como a perpetuação dessas dores criam gerações de jovens que, cobertos de raiva e medo, tendem a reproduzir os hábitos, dando continuidade a um ciclo vicioso. É interessante também como ela dialoga com outras faixas: a cura do luto através do luxo (United In Grief), a sensação de poder sobre uma mulher (Worldwide Steppers), a masculinidade herdada de seu pai (Father Time) e a inabilidade de expressar seus sentimentos por conta disso (We Cry Together) são apenas alguns exemplos de como racismo, pobreza, masculinidade tóxica, abandono e abuso são como maldições hereditárias em muitas famílias, e que Kendrick quer romper com seus filhos.

Com isso, Mirror encerra de vez o álbum. A canção peca pelas escolhas musicais, que assim como em outras faixas, soam fracas e desconectadas do artista, que aqui já parece estar nas últimas. Liricamente, ela fecha o arco narrativo de forma ideal, onde Kendrick diz que escolhe a si mesmo e sua família, antes das maldições e do legado. Além disso, a constante presença de sua esposa nas faixas, as participações de seus filhos e a forte parceria com seu primo Baby Keem – que com o novo selo deve gerar trabalhos incríveis no futuro – só reforçam que o Kendrick Lamar de 34 anos é todo sobre família. Mais do que isso, ele está empenhado em quebrar os ciclos destrutivos para que seus familiares desfrutem de uma vida que ainda é raridade para a imensa maioria da população preta mundial.

Uma das grandes virtudes do MC sempre foi a de mergulhar em temas complexos e socialmente desafiadores para levá-los aos grandes públicos como música pop. Aqui, é visível que sua preocupação com isso diminuiu muito em relação ao último álbum, apesar de ainda existir em faixas como Die Hard, por exemplo. Sendo um álbum em que a produção musical de muitas faixas flerta com o experimental, e algumas até abrem mão de quase todos os artifícios para deixar o MC recitar seus versos, é natural que ele não seria uma experiência necessariamente agradável para todos os ouvintes. Soma-se isso o fato de que a repetição de certos termos ofensivos, a falta de clareza do posicionamento de Lamar sobre pautas relevantes do mundo atual e a polêmica participação de Kodak certamente fazem com que o álbum crie uma sensação de desconforto ao longo de seu desenrolar.

Mr. Morale & The Big Steppers pode ser visto por dois aspectos que nem sempre dialogam bem. Na produção musical, o álbum tem altos muito altos, mas talvez seja seu projeto com a maior distância entre ele e os baixos. Aqui tem beats espetaculares, alguns com uma produção simples mas que casam bem na proposta, e outros que dão rasteira na performance do MC . Porém, liricamente, a história é outra. Ao pensar no álbum como literatura, é impossível não ficar chocado no quão fundo Lamar foi com suas letras, personagens e temas que constroem toda uma narrativa que se mantém firme até a última canção, sem desperdiçar nenhuma.

Aqui, Kendrick até abre mão das rimas mais simbólicas e metafóricas de TPAB e opta por versos mais diretos, uma boa escolha para garantir que a mensagem será absorvida, e toda sua entrega ao performar essas letras faz com que cada linha ganhe uma força absurda, especialmente em canções que funcionam como momentos-chave do álbum. A ideia de Tolle – sim, o mentor espiritual – de que baseamos nossa noção de ‘eu’ apenas nas coisas ruins que nos aconteceram, é um conceito-chave que permeia a obra, e que Lamar usa como base para construir seu cenário emocional, para depois mostrar que é possível desconstruí-lo, tanto em sua mente quanto na de seus ouvintes. Logo, ao expor seus demônios da forma mais crua e vulnerável, ele consegue traçar um cenário emocional comum para o povo preto – e em especial, o homem preto.

A essa altura, Kendrick está em um ponto de sua carreira provavelmente similar ao que os Beatles estavam em meados dos anos 60, quando decidiram parar de fazer shows e se dedicarem apenas ao estúdio. É o ponto em que o artista, após chegar ao topo do mundo e marcar uma geração, pode se desprender dos antigos rótulos e expectativas para realmente fazer o que quer. Se para os ingleses isso resultou na produção de alguns dos álbuns mais influentes da história, para Lamar, Mr. Morale & The Big Steppers é só o começo de uma jornada – agora fora da TDE – onde o céu é o limite para sua criatividade. Assim como o 4:44 de Jay-Z, MM&TBS é a prova do que acontece quando se deixa um rapper viver e ser relevante por tempo o suficiente, a ponto de rimar sob a ótica que só quem está no topo do mundo consegue enxergar. Infelizmente, no hip-hop ainda são poucos os artistas que vivem ou se mantém até esse ponto, mas é certo que Kendrick vai puxar esse bonde. Quem viver verá.

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