O rap nacional, assim como outros movimentos artísticos, é recheado de convenções em seus discursos, estratégias de mercado e contextos de criação. Isso não é necessariamente algo ruim ou bom e na verdade são aspectos de sua identidade cultural e suas expressões. “GARCIA”, terceiro disco do manauara Victor Xamã, é um exemplo perfeito no uso dessas condições. Por manipular seu discurso de maneira estritamente metódica, o MC consegue criar sua narrativa que não é especial por ser incomum, mas sim por dialogar muito bem com o cotidiano artístico e as contradições que envolvem aqueles que, como ele, dependem de suas criações para sobreviver.
Num ambiente de constante busca por pioneirismo e pelo novo, conseguimos encontrar muitas coisas que deveriam pertencer a um passado distante. Em GARCIA, a primeira voz que ouvimos não é a de Victor e sim da cantora Maysa, em um recorte da canção “Catavento”. Seu refrão, que fala sobre a sensação da distância sentimental, muito proveniente de algum tipo de deslocamento, serve como um microcosmo de tudo que seremos expostos em seguida. Essa dor da locomoção logo pode ser relacionada com o movimento cíclico e constante que vários MC’s das mais diferentes regiões do país são expostos. O êxodo de sair de sua terra natal, em direção à grande e fria metrópole dos sonhos que é São Paulo. Nomes como Don L, Zudizilla e o próprio V. Xamã precisaram executar esse passo perigoso e criaram uma amálgama entre esse fato e seus trabalhos.
A intro de GARCIA encara esse movimento e os sentimentos que por consequência são criados por ele. O MC não foca apenas nos aspectos mais pessoais, como suas condições físicas e a relação distante com seus conterrâneos, mas também em como ser esse estrangeiro nacional influencia dentro de sua relação com a cena. É muito claro o incômodo com a desvalorização simbólica e a diminuição da relevância de seu trabalho. O artista é sim apreciado por um número considerável de pessoas, porém uma parcela do público geral (leia-se aqui o mercado como um todo) não o encara como um artista sólido e estabelecido. E nesse momento o MC toma a decisão mais importante dentro dessa história, que direciona o que vem a seguir e torna esse álbum tão único.
Como já mencionado, seus problemas são comuns àqueles que habitam uma SP em busca de sonhos e V.Xamã decide trazer uma perspectiva paradoxal em relação a esses percalços. A cidade não é maior que ele, o impossível não é uma barreira e os que desacreditaram são apenas vozes distantes do passado. A célebre, mítica e perigosa São Paulo não é a protagonista dessa história, sendo apenas uma coadjuvante que perde espaço para o poderoso grito dividido em 9 faixas, que é GARCIA. O indivíduo aqui, não é sujeito a grandiosidade urbana, mas a selva de pedra se dobra perante a potência de sua arte.
O disco é um estudo de personagem que passa por diferentes aspectos da psique de Victor. Só que, ao invés de delimitar o que seriam os elementos que fazem parte de sua vida pessoal e artística, ele determina que os dois talvez sejam a mesma coisa. Suas relações e atos são pautados pela forma com que sua vida se desenrola em prol da música. E todos os relacionamentos mencionados nas letras agem de forma literal e simbólica para representar os fatores sociais que estão atrelados à figura do artista. O distanciamento de sua terra natal serve para refletir como é difícil a empreitada de todos aqueles que se locomovem. O apagamento de suas origens, o afastamento daqueles que dividiram círculos sociais e muitos outros problemas são colocados nesse fronte. É meio como a exposição de como o espaço artístico não é aprazível em diferentes óticas, seja pelos sacrifícios materiais necessários para colocar seu trabalho na rua ou até mesmo ao aparar convívios que se tornam prejudiciais ao irem de encontro com nossos desejos pessoais. GARCIA aborda muito o encontro das relações humanas com os números crus do mercado e como isso afeta os mais variados âmbitos da vida de um MC.
Ter a possibilidade de poder criar um trabalho baseado em como Victor enxerga a sua própria existência, é o que dá a ele a segurança necessária para continuar construindo sua história. Quando o próprio afirma: “não quero ser um retirante pintado por Portinari”, isso vai além dos aspectos materiais representados graficamente pelo quadro do pintor paulista. V.Xamã batalha pela chance de criar sua própria narrativa. Ser autônomo sobre a obra de sua biografia permite demonstrar que seus algozes não acompanham a potência de suas linhas e rimas. E essa autonomia não é apenas sobre o conceito e discurso, mas também na liberdade de manipular sua música, tanto nos âmbitos criativos e mercadológicos. A suposta cidade de oportunidades, que é São Paulo, também é comandada por lógicas financeiras que vão de encontro à ideologia do MC. Encontrar independência ao meio disso, também é se libertar de mais um dos tentáculos urbanos que tentam se aparentar maiores do que realmente são.
“O meu dinheiro organizado
Realizando ambição de bairro
Filho da puta, fala baixo
Se não no esquecimento você cai
Sonho norte americano é falso
Sonho brasileiro é o real” (Luz Acessa)
GARCIA se desenvolve como uma luta pela manutenção da relevância das sensações e sentimentos de Victor. A realidade posta aqui, se encontra como um embate entre aquilo que ele acredita e preza, contra o imaginário estabelecido em um ambiente tão distante de sua terra natal. Para alguém que batalhou contra a correnteza que tenta manter estática a produção cultural fora do eixo RJ-SP e prende artistas num ciclo vicioso de perda-e-perda, V. Xamã não parece disposto a recuar diante da grande metrópole. O álbum trata muito sobre uma individualidade conquistada sob muito esforço. Porém, ser um indivíduo não termina em sua própria existência e sim, nas interações que temos com o mundo e em como as desenvolvemos. Victor sabe que lutar por quem ele é, no mais puro significado da expressão, é o que protege sua liberdade, sua relevância e o lugar de onde veio. Ele tem noção de que é o protagonista de sua própria história e que não está disposto a fazer concessões e negociar sua liberdade.
Esse texto foi originalmente postado no Medium do Gustavo.