Review: niLL – Good Smell Vol. 2

Ascencio aqui. niLL tem se demonstrado um criador de universos, mesmo quando essa talvez não fosse sua intenção, como no familiar, intimista e extremamente bem sucedido Regina. O fato é que de conceitos e valores fechados dentro de um álbum até a criação de terras numeradas como um verdadeiro multiverso dos quadrinhos, o MC jundiaiense expande cada vez mais sua criatividade para dentro de sua arte. Em Good Smell Vol. 2, a história contada no primeiro volume ganha mais subtexto e vida em uma nova roupagem musical.

 

 

A saga Good Smell possui a característica particular de não apenas dar mais espaços a vozes de mulheres no rap, mas também de espalhar por toda a sua estrutura a presença feminina. Com isso, as tracks serão sempre intituladas com nomes de personalidades fortes e representativas destas, sendo no Vol. 2, para mais, majoritariamente mulheres pretas. Além disso, toda a escrita do MC será feita sobre o recorte de sua ótica direcionada para uma figura feminina, sendo assim, a própria presença do dono do projeto justifica-se por esta.

Good Smell Vol. 1, de 2018, ainda bebia muito da estética sonora que o ouvinte de niLL acostumou-se a encontrar, tendo como carro chefe o vaporwave. Aqui, no entanto, novamente produzindo a maior parte do trabalho, O MC se reinventa mais uma vez e, para dar base a todo esse universo cyberpunk feminino afrofuturista, se vale mais agora do House, Synth Wave e até mesmo do Funk, com muitos sintetizadores, tudo isso para soprar vida e novidade nessa já conhecida atmosfera que se expande. Indo além, no trabalho de dois anos atrás, a personagem aparentemente ainda mais jovem estampado a capa não possuía muita profundidade, isso muda nesse momento quando ela ganha mais fisionomia, um hobbie musical e, é claro, um nome: “Lilith”. Este é também o título da oitava track, momento crucial para que se entenda a relação da personagem com niLL e sua escrita, onde este se mostra como apenas um mensageiro, usando sua composição para descrever esta realidade alternativa:

E ela me disse pra imaginar

Um dia distante que ainda via chegar

E desenhá-lo em linhas que escrevo

Sei que nosso barco não tem espaço pro medo

A renovação de produção é vista desde o início em “Evelyn Dove” de piano e contrabaixo agitados que abusam de sintetizadores e claps ditando o ritmo. O MC dá as caras com bastante distorção também por meio do autotune, colocando na mesa linhas ascendentes que acompanham o compasso até o seu fim. Altniss, a convidada da track, dá mais espaço para o beat correr, o que aumenta mais ainda o swing e o traços dançantes da faixa, além de possuir boas variações de flows e fala sobre mudanças libertadoras que culminam em novas óticas sobre relacionamentos.

Logo de cara percebe-se que, cada vez mais, também avançando com o que foi visto no primeiro episódio, niLL tende a participações mais discretas, como se ele próprio representasse a ínfima parcela masculina que sobrevive ao “Change Day”, evento apocalíptico deste universo temático, onde 30% da população morre, devido a guerra travada em busca do fim da dominação hegemônica do homem sobre a mulher. Esse raciocínio segue em “Dorothy”, track em que Ashira domina o belíssimo e harmônico instrumental de cordas distorcidas, demonstrando versatilidade em uma entrega tão dançante e característica quanto a track sugere. O dono do projeto, que mais parece convidado, volta para um bom segundo verso adaptando sua levada e até garantindo variações mais cantadas.

“Dandara” completa essa trilogia de participações femininas com Bivolt, a MC demonstra mais uma vez o quão bem se sai não apenas rimando, mas cantando suas próprias notas. Ela é responsável por entregar o melhor refrão de toda a obra, bem leve e calmo como a produção requer. Esta, por sua vez, parece trazer algo mais forte do passado artístico de niLL, estando em um algum ponto entre “Regina” e “Lógos” com um sample de piano chiado ao fundo e uma bateria bem calma, ditando uma estética mais vaporwave e lo-fi. Falando disso, outro instrumental que destoa do geral é o banger seco com cintilantes trompetes de “Rosetta Tharpe” produzido por RyamBeatz.

Em contribuições solo, niLL tende mais ainda à brevidade de suas rimas, deixando para que a sonoridade fale e penetre significado a suas poucas palavras. Uma escolha muito arriscada caso não se confie completamente na qualidade técnica da produção, o que definitivamente não é o caso já que este é, de longe, o lado mais forte e inovador do projeto. O exemplo mais extremo disso é “Shirley Chisholm”, track que tem o peso de encerrar o trabalho sendo pura e simplesmente dois minutos de um maravilhoso Synth Wave mesclando-se ao Funk em sua bateria, com direito a até mesmo uma flautinha envolvente. É impressionante como a progressão é composta por diversos elementos sonoros que surgem, se desenvolvem e dão espaço para que outros façam o mesmo. Com tantos elementos de percussão e sintetizadores trabalhando, é preciso muita perícia para que tudo não vire uma bagunça. O resultado final é uma verdadeira orquestra que, mesmo sem nenhuma linha vocal, diz, tão bem quanto as outras faixas, sobre o universo conceitual do projeto. Vale ressaltar que a combinação destes estilos também se repete em “Maria Firmina”, dessa vez tendendo mais às características brasileiras ao começar em seu ritmo agitado, passar pelos samples e terminar em sua composição característica.

Mas, o melhor momento do volume 2 é, sem dúvidas, “Ellen Johnson” onde produção e entrega vocal encontram seu ápice de confluência. A bateria novamente vai ao ritmo e sonoridade do Funk, mas, dessa vez, se alia a mais um maravilhoso sample de cordas e, para dar o peso eletrônico da track, conta também com uma variação de 808 muito comum em vertentes britânicas. Em sua melhor performance, a voz de niLL é doce e parece flutuar sobre o beat, atingindo o seu ponto máximo no refrão que embala o ouvinte em sua levada e acentuação. A faixa poderia começar a fazer água no segundo verso, quando o MC volta a rimar em sua forma mais padrão, o que quebraria completamente a proposta da track caso perdurasse, mas isso não ocorre e logo o ouvinte está de volta à estética cativante da música.

A esta altura da análise, é interessante ressaltar que o novo trabalho de niLL segue algumas tendências artísticas que ganharam mais forças neste ano dentro do rap, como por exemplo a criação de algo novo através de uma mescla entre sonoridades de fora e ritmos brasileiros. No projeto em análise, isso ocorre nos samples e principalmente, como visto, na influência do Funk; neste último caso, o mesmo acontece atualmente a diversos subgêneros e artistas, tendo o seu exemplo de maior relevância até então em “BRIME”. Um segundo ponto está na retomada das batidas eletrônicas, graves e sintetizadores para criação de uma atmosfera sonora futurista, algo visto, mesmo que de forma mais tímida, em “Bivolt”, tendo na track “Tia Ciata”, produzida por Tan Beats e Sound Flex, uma boa semelhança com a produção de NAVE neste último álbum citado.

Quando se passa de forma mais detida à caneta do MC, é onde alguns problemas surgem. niLL nunca demonstrou pretensões em ser um liricista. Neste novo trabalho o seu padrão performático em suma se mantém, o que, de certa forma, não combina com a constante renovação que a produção apresenta. Em seu quinto trabalho, pouco é acrescido para além de sua usual entrega e escrita que flerta entre rimas descritivas e abstratas, deixando suas camadas e relações em suspensão, para que o próprio ouvinte abstraia ou interprete um significado nas lacunas deixadas pelo literal. Há outro problema que pode ser exemplificado pela já citada “Rosetta Tharpe”, nesta, estes espaços deixam de ser conceituais e passam a compor de forma física a própria métrica do MC, criando buracos que travam sua levada e prejudicam sua entrega.

No entanto, não é preciso ignorar estes pontos para reconhecer a qualidade do projeto. “Good Smell Vol. 2” ganha muito em sua força inventiva e criativa, seja na produção, a frente do que já foi lançado até aqui neste ano, seja na expansão de seu universo conceitual, único em todo o cenário nacional. Daqui da terra dos críticos, esperamos que esse multiverso cresça cada vez mais, sem crises em suas terras infinitas.

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